Gosto de Mercados. Aonde me desloque, desde que os haja, não deixo de por eles passar, espiolhando-os de alto a baixo. A que propósito vem isto? Não sei, talvez seja ainda resultado do choque que senti ao ouvir num canal televisivo um espectador dizer, a propósito do aumento da electricidade: "Está na altura de pegar em armas e darmos cabo deles todos", ou uma maneira de fazer com que a crise desconsiga envolver-me. Vou hoje falar-vos de um. A 17 quilómetros de Luanda, na estrada para Benguela, está Benfica e o seu Mercado do Artesanato, também conhecido pelo 17.
Para além dos trabalhos de artesãos, em madeira, verga, vimes, tecidos, conchas, marfim, ossos e metais, e de criações plásticas a óleo, ou aguarela, em telas e sobre areia colada em estopa, ali se vendem papagaios, periquitos e outras aves exóticas, macacos, chimpanzés, cágados, tartarugas, pombos verdes, passarinhos e mais bichezas, por vezes até sengues, (um sáurio grande aparentado dos crocodilos) e, também, peles de onça, leão, crocodilo, lagartos, jibóias e outros répteis.
Vendem-se dikosos de quimbandas e de outros curandeiros, benzedeiros e exorcistas, como pós de cheirar e queimar, ervas de fumar e fluidos de esfregar, recicladores deles e desabrochadores delas. Os «papás»(tratadores de enfermidades e debeladores de azares) trocam por dinheiro, amuletos espanta-espíritos-maus, invocações de curar males e atavios das almas, como fotografias do Papa João Paulo II, que peregrinou por Angola em Junho de 1992 (provavelmente agora também já se comercializam as do actual chefe dos católicos Bento XVI), tudo embrulhado em grandes sorrisos, as mais da vezes sem dentes, mãos cheias de bons conselhos e sussurros de abuamar o mais seguro dos espíritos. Com paciência e um pouco de diplomacia de conveniência (uma cerveja, um maço de cigarros e, ainda melhor, uma nota de dólar) conseguia-se (consegue-se?) que um ou outro dos curandeiros falasse dos seus processos de tratamento das mais diversas maleitas: uns, puramente mágicos; outros, com recurso a preparações estranhas de diferentes ingredientes nunca revelados porque no silêncio guardam eles a arte do negócio; outros ainda invocando vontades divinas. Alguns até bungulando para maior efeito.
Os mercadores eram (serão ainda?) angolanos e zairenses, estes em maior número e dominando, sobretudo, as bancas dos marfins e ossos a imitá-los, (sendo necessário olho aberto e tacto apurado para se fugir ao engano) e das malaquites e outros ornamentos metálicos. Têm, ainda, liamba e peças antigas de arte Tchokue, Kioka e Bakonga, verdadeiras relíquias roubadas de museus da região das Lundas, no Leste de Angola. Como os seus camaradas da antiga Constantinopla, que iguais continuam hoje na actual Istambul, nada vendem sem discussão de preço, começando, sempre, por um «oferece amigo», enfatizando o vocábulo da afeição.
Angolanos (poucos), e estrangeiros (muitos), em especial portugueses, a trabalharem nas estruturas militares e civis das Nações Unidas, ONGs e em programas de cooperação, eram os seus frequentadores, dele fazendo destino obrigatório, aos fins-de-semana, em particular aos domingos, que os preços eram mais baixos ao fechar da feira. A maior parte, para lá rumava, na busca de uma recordação, ou de qualquer coisa para oferecer, no regresso à terra. Outros, por ali apareciam para rever conhecidos, saber novidades, trocar informações, reacertar memórias, recuperar afectos perdidos, conquistar amores novos..., que as kafekas abundavam! Foi no 17 que conheci, e conversei pela primeira vez, com Fernando Nobre, o urologista da AMI, candidato derrotado à Presidência da República e rejeitado depois pelo Parlamento.
Dele se falava assim: vamos ao 17. Em tom intimista, como se de um amigo se tratasse. E tratava, pouco importando o lixo, o calor estorricante, as cubatas fedorentas envolvendo-o, ou os bandos de putos, esfomeados e esfarrapados, alapando-se aos carros, fazendo da nossa chegada uma festa. Nada nos aquietando, outrossim, o regresso a Luanda, ao pôr-do-sol, com passagem pelo Musseque Rocha Pinto, durante muito tempo uma zona de alto risco, onde eram frequentes os assaltos com armas de fogo, a viaturas por lá circulando. Escapei a dois.
Desculpem. Prometo curar-me.