quinta-feira, 31 de maio de 2012

"Não sei se nada sei"


Não é cinzento morto
O céu é azul.
O Sol brilha.
Folhas verdejam nas árvores
Cantando viajam os rios
Sente-se o vento
A noite não toma o espaço
É apenas
Passagem para amanhã
Riem as gentes
Livres as palavras trocadas
Dão-se mãos
Não se dorme ao relento
Ninguém se refugia
Na exiguidade da indiferença
Nem na penumbra
Da renuncia à participação
Não é falso o carinho
No seu recinto
As almas vêem-se
Os espíritos falam-se
O luar a todos veste
Costas dadas ao engano
Passam horas sem medos
Pelo pensamento livre correndo
A Liberdade
Não anda a monte

                                            (Acordou com o medo de andar perdido)

domingo, 6 de maio de 2012

Dia da Mãe


Porque a memória permanece viva:

A última vez que te vi estavas deitada, serena, dada ao sono de que não se desperta. Olhei-te. Invadiu-me uma raiva maior que a dor. Foi dela que eu nasci, disse para mim, em silêncio, agarrado à solidão que se me chegou. Não chorei. Tocaram-me no ombro. Vi taparem-te. Fizeram-me um sinal.
Acompanhei a tua viagem até ao local em que te desceram e te cobriram com uma terra diferente da que te vira nascer. Segurei as lágrimas que teimavam em soltar-se. Aquela mágoa não a quis partilhar. Era só minha! Sofri-a na alma e no meu coração que sangrou.
No suco dos meus olhos vi, então, partes da nossa vida. A tua foi longa, chegaste perto dos 100. Lembrei-me que tempos antes te fôramos visitar, já tu vivias num mundo longe do nosso. Oferecemos-te uma caixa de bombons. Deliciaste-te, eu vi, mas as palavras que então disseste já nada tinham a ver connosco. Estavas noutro local, provavelmente num paraíso para que te transportaras, onde contigo vivias, e nós não habitávamos.
Recordei-me, também, do muito que me ensinaste. Um dia, era eu ainda um catraio que jogava descalço com bola de trapos, fui fazer-te queixa de uma “malandrice” que o meu irmão me fizera – zangado, rasgara-me a camisa. Soubeste da atitude dele, vi nos teus olhos que não gostaste, e logo pensei agora é que ele vai ver! Atiraste-lhe umas palavras, de que já não me lembro, e ele voltou para o quintal. A mim deste-me um ralhete, apontaste-me o dedo e disseste: não se denuncia um irmão!
Aprendi para todo o sempre! Como para sempre em mim ficaram os carinhos das tuas mãos fagueiras, nos tempos em que caminhava pela minha meninice.
No momento em que a última pá de terra sobre ti caiu, subiu um eco trazendo-me à memória silêncios. Silêncios meus, hoje cheios de palavras que gostaria de te ter dito.
Não sei por onde andas agora. Pouco importa. Mas se te voltar a encontrar, dir-te-ei: Mãe gosto muito de ti.
Beijo a tua memória.
( A todas as mães desejo um bom dia.)
 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Eles, ao xadrez


(Reedição de um post de 2010)
Pelo caminho se meteu. Ao fundo, deu com uma casa meio acubatada, duas tábuas a darem ares de porta. Forçou a abertura, sem o conseguir. Caiu-lhe em cima uma tabuleta. Leu o que escrito estava, em linhas meio enviesadas: “aqui vive Deus, em recolhimento, meditando, não entre.”
Obedeceu.
Três dias depois voltou à estrada. Caminhou pelo primeiro desvio. Deu com um portão de ferro, de cadeado franqueado. “ Reino do demo”, leu numa chapa chamuscada e meio amolgada, “faça o favor de entrar”.
Rejeitou o convite.
De regresso a casa, pôs-se a cismar. Assim ficou sete dias inteiros. Ao oitavo, voltou às andanças, por um carreiro de poeiras, desta feita. Uma vida depois parou. Sacudiu o pó, limpou os olhos. Aquilo não era cubata, nem casa, nem nada de parecido, era só um sítio com um letreiro, de luz aos tremeliques, dizendo: “Aqui vivemos os dois. Entre.”
Entrou.
Numa mesa a levitar, estavam, Deus, com o bordão de peregrino no bolso, e o demo, tridente à cinta, a jogar xadrez. Nos intervalos de cada jogo, antes das peças realinhadas, Deus tentava moldar um pedaço de barro. O demo batia com o sílex nos chavelhos, a ver se deles tirava a faísca para atear o tridente. Palavras não as largava o silêncio.
De confusão se encheu. Voltou para trás. Em casa uma vez mais imaginou, com tenacidade. Findo o torvelinho do pensamento tornou ao sítio do letreiro, que já lá não estava. Caída no chão, apenas uma parra gatafunhada.
“Ele ganhou, mas batotou. Voltarei mais tarde. Quero a desforra. Assinado – demo.”
Ao dobrar da folha, numa das esquinas, estava aposto o carimbo: “Assinatura reconhecida por Deus.”
Ficou sem saber que destino dar aos seus pensares perturbados.
Muita vida depois, foi de novo ao letreiro. Encontrou-o, despido de dizeres, de luz apagada. Claridade, apenas a do tecto brumaceiro descido da Lua, chegando para os ver. Um sem o bordão de peregrino, outro despojado do tridente. O primeiro de testa enrugada, barbas longas e brancas, o segundo de chavelhos caídos. Ambos envelhecidos, mas continuando, em silêncio, de olhos pregados no xadrez.