Saudade
No andar das minhas saudades abre-se uma clareira, um espaço sem caminho, uma terra a que faltam chão e céu, em que ar não há, para onde uma se escapa e se perde. É a saudade do que nunca verei, das palavras que ficarão por dizer, do sono que não terei, do sonho que não virá. Da tristeza, sempre saudosa dos instantes felizes.
É a saudade das flores que nascerão, sem que as veja, dos rebentos brotados, da dor que me não magoará. Do olhar reluzente em que deixarei de mergulhar. Das carícias de mãos de veludo. Dos murmúrios e sussurros, que ficarão por escutar. Da vidraça da janela do meu olhar. Do colo do meu descanso e aconchego. Da Lua e das estrelas, espreitando noites de amor sob as casuarinas sopradas pela brisa nascente nas águas da Kyanda.
É a saudade de outras saudades, inquietas e agitadas, mas também de meiga e profunda ternura. É a saudade do mar e rios porque nadei na minha infância, do mundo que mudará sem que o veja. Duma véspera que chegará sem amanhã. Da embriaguês com os odores da terra vermelha beijada pelo choro das nuvens. Das tempestades vencidas.
É a saudade da escola, da fisga de caçador furtivo, das correrias por aventuras loucas, do gesto destemido, na guerra, do tremor do medo a segurar a paz, do assobio reunindo amigos, da ximbica aprendida. Da rebeldia. Do grito da Liberdade. Do encontro com a consciência. Das fogueiras crepitantes, dos merengues nas rebitas mussequeiras. Das denguices requebradas das meninas do baile, do calor enleante das esteiras. Das sementes encantadas de tamarindo, do beijo da pitanga. Da ardência dos caluquetas. Do país que estive quase a ter.
É a saudade de ausências e presenças, do meu outro eu, companheiro de muitas andanças. Do relinchar dos cavalos à solta do meu espírito. Do choro sozinho da solidão.
É a saudade do barro que um dia amassei, moldando o amor com que vivo, no arco-íris da minha tribo.
É a saudade desta saudade fugitiva, que, num dongo sem leme, me leva para anoiteceres e alvoreceres desconhecidos.
(Reedição de um texto de 2009)
Saudade
Saudade – O que será... não sei... procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.
Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.
Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe - tão longe! - de minhas redes tranquilas.
Saudade... Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não... e me treme na boca seu tremor delicado...
Saudade...
(Pablo Neruda, in "Crepusculário" - Tradução de Rui Lage)