segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Tremura da alma



"Um dia a lágrima disse ao sorriso: invejo-te porque vives sempre feliz...


 ... O sorriso respondeu: enganas-te, pois muitas vezes sou apenas o disfarce da tua dor".
(Autor desconhecido)
 

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Peço um título

(Esta foto, de autor desconhecido, está guardada na Biblioteca Pública de New South Wales - Austrália)
Desejo a todos um bom fim-de-semana.

A saudade não cabe cá dentro!


Éramos seis. Catraios desenfreados e reguilas, alunos do sábio e paciente professor Cardoso na Escola 8 em Luanda, onde frequentávamos a primária. Quatro negros, dois brancos.
Não éramos estudantes por aí além, mas também com aquele mestre bastava ouvi-lo atentamente e seguir o que ele escrevia e desenhava no quadro negro (o que fazíamos) que o saber ficava-nos. Diziam uns mais velhos que éramos “os putos que sabiam”. Não seria tanto assim, mas a verdade é que passámos sempre de classe com bom aproveitamento e abraços do Prof.! Que agradável era sentir aquele peito de homem bom encostado ao nosso! Também havia tabefes, reguadas e castigos, claro, mas aquilo era como o bater de mãe: não doía.
Não ficávamos pela escola. O nosso era um grupo de aventureiros. E a aventura não estava na sala de aula (só havia uma), onde, pensávamos, já tudo tínhamos descoberto (para nós escrita e contas eram um tu cá tu lá, até sabíamos onde pôr a cedilha e o h do verbo haver, para já não falar da tabuada que dizíamos enquanto o diabo esfregava um olho), mas fora dela.
Viesse uma borla, ou decidíssemos uma borla (sim, também o fazíamos!) e pronto! Lá íamos os seis atravessar a rua a correr, guinar para cima em direcção ao Miramar e, aqui chegados, flectir para as Barrocas do Bungo, à procura dos sulcos de terra vermelha que desciam para o Mar da Boavista, lá muito em baixo. Só nos metíamos nestas andanças quando a luz que vinha do céu chegava sem nuvens, apenas deixando ver o azul. Chuva nas Barrocas era um Deus me livre!
Lá íamos, descendo o monte, numa correria trôpega e ziguezagueante, saquetas da escola bem agarradas ao pescoço e sandálias nas mãos. Chegávamos lá abaixo cansados, mas ainda com forças para o encontro com o mar. Entrávamos pisando a borda baixinha do Atlântico que, embora por vezes envergonhado, parecia estar à nossa espera. Envergonhado, sim, porque havia dias em que nos acolhia com as águas barrentas tingidas pela lama vermelha arrastada das Barrocas por chuva violenta da véspera. E disso, estou certo, ele não gostava. Preferia banhar-nos com águas cristalinas.
Foi ali, esbracejando por espumas brancas e lamas, que me lancei na aventura do mergulho no oceano. Conheci-lhe a carícia. Aprendi a não lhe contrariar a força e a vê-lo por dentro. Tomei-lhe para sempre o gosto salgado como os das primeiras lágrimas que chorei. Demos e damo-nos bem. Mais tarde apresentou-me a Kyanda, na Ilha de Luanda.
Foi ali, à beira do Mar da Boavista que conheci amigos grandes: os pescadores, gente boa como pouca tenho encontrado.
Para além de sabedorias aprendidas no convívio, conversávamos, sem pressas, sentados na areia, em círculo. Ensinaram-me eles a arte de ximbicar as canoas: movê-las, não com remos, mas com bordões que fincavam no fundo do mar, impulsionando-as, o que exigia habilidade e perícia. Muitas vezes me aconteceu não subir o bordão a tempo, continuando a canoa a deslizar. Ficava, então, agarrado ao pau pendurado aos pinotes no ar, como um kamundongo preso pela cauda. Depois, está bom de ver, era a queda na água, o esbracejar e o vir à superfície com alguns pirolitos pelo meio e ranhoca a correr-me pelo nariz. Os pescadores riam e diziam: “munanga não lhe dá no jeito”. Mas, como mestres aplicados, insistiam. E eu aprendi!
A chegada a casa, sempre tardia, que o caminho demorava, era outra aventura: ralha, tareia da mãe e banho forçado com sabão macaco, pois então!

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A ver se me passa a neura...


No Reino vegetal

Aquele anafado, que ali vai, mora no rés-do-chão do prédio de gaveto da Rua Sul. Ao olhar-se-lhe fica a impressão de ter vencido a insónia. Parece fresco que nem uma alface. Atrás, caminha o vizinho do primeiro direito a quem, há tempos, chamou, na fervura de uma altercação, mariquinhas pé de salsa. Mais ao fundo, vê-se agora, vem a porteira do condomínio. Já lhes pôs o olho em cima. Lembra-se ela de ter assistido, por mero acaso, à discussão entre os dois. Na altura, nada disse que se ouvisse. É pessoa comedida, não um ser metediço na vida dos outros, já lhe bastam os enredos da sua, mas pensou lá com ela: pois, aquilo é só repolho podre, a culpa é de quem os criou que se esqueceu que é de pequenino que torce o pepino. Se qualquer deles tivesse escutado aqueles pensamentos teria, certamente, ficado vermelho que nem um pimento. A porteira acelera o passo, passa-lhes à frente e vai à sua vida, de bengala a dar a dar, que os joelhos já nem como aloé lá vão.
Mais rápido, não vá o que vem atrás chegar-se-lhe, o do rés-do-chão dirige-se para o café da praça ao fim da rua onde é hábito encontrar-se com um amigo, com este matabichar e dar um dedo de conversa, por vezes dois, antes de seguir cada um para o emprego. Chegou. O amigo aparece. Sentam-se, pedem o costume.
Diz o amigo:
- Então, trouxeste o livro que te pedi ontem?
- Não, não me lembrei.
- Irra! Já é a terceira vez. És bem um cabeça de alho chocho!
- Deixa-te disso, vai à fava, trago-to amanhã.
Os croissants e o pão de Deus recheado foram-se, as meias de leite esvaziaram-se.
- Vai uma bica?
Pergunta o do rés-do-chão, que logo continua:
- Lembras-te de te ter contado aquela cena com o meu vizinho do primeiro direito?
- Sim, e então?
- Pois não é que ontem à noite, estava ele à janela e eu a chegar, me chamou abóbora!
- E tu, o que fizeste?
- Nada, para discussão já basta a que houve.
- Que grande nabo me saíste, és bem um banana!
A conversa fica por aqui, porque da mesa ao lado se levanta uma colega do morador do rés-do-chão por quem este sofre de amores inconfessados.
- É boa como o milho!
Diz o amigo.
- Pois é.
Insiste o amigo:
- Só não percebo porque tremes que nem varas verdes sempre que a vês.
Já levantado, o do rés-do-chão, mãos nos bolsos e cigarro ao canto da boca, lá vai para o trabalho, a pensar com os seus botões: que coisa, nem hoje que é Sexta-feira, dia de Vénus e de Afrodite, ele me larga o tomateiro!
 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Um cantar para o fim-de-semana

Trago-vos Atahualpa Yupanqui
Espero que gostem. 


Bom fim-de-semana.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

É hora!


Os momentos porque passamos são instantes em que nos pesam a angústia, a desilusão, o desespero e a indignação. A miopia que vemos, e para além de ver também ouvimos, fazem-nos sentir envoltos numa névoa, escrita a cinzento, que persiste em querer ser contínua.
Por mim, não quero mais ouvir as vozes, nem ver os rostos dos algozes do meu país, que querem exterminar-nos.  
Dá-me ganas de partir, talvez seja melhor dizer fugir, mas logo me sustenho na minha cubata à beira da encosta rugosa da minha ilusão onde a escravatura não é a lei da vida, e onde nunca quis, nem quero ter, um leito de morte lenta. 
A revolta é possível. Não temos que ter pela Liberdade um amor cobarde.


domingo, 16 de outubro de 2011

O assalto do desgoverno

 "Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara"
(José Saramago)
[“Não há alternativa? Há sempre uma alternativa mesmo com uma pistola encostada à cabeça. E o que eu esperava do meu primeiro-ministro é que ele estivesse, de forma incondicional, ao lado do povo que o elegeu e não dos credores que nos querem extrair até à última gota de sangue.” Nicolau Santos, in Expresso de 15 de Outubro]
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[“Os seus propagandistas (do Governo) podiam poupar-nos a ilusões e a demagogia ideológica: daqui (das medidas do Orçamento) não resultará qualquer Estado mais virtuoso na sua magreza, nem nenhum país mais competitivo, nem um Portugal melhor. Sairá um país mais pobre, exausto, mais dependente, menos culto, menos qualificado, com maiores diferenças sociais, mais zangado e mais violento e, muito provavelmente, com menos liberdades.” Pacheco Pereira, in Público de 15 Outubro]
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[“Até há dias, a estratégia do Governo passava por diferenciar Portugal da Grécia. Paradoxalmente, para evitar sermos vistos como a Grécia, a solução agora proposta é a mesma que levou ao descalabro económico e social que se vive nas ruas de Atenas. O fim dos subsídios de férias e de Natal, a somar a todos os outros cortes salariais e aumentos de impostos, terá inevitavelmente duas consequências: o colapso da procura interna e uma recessão ainda mais profunda do que o previsto.” Pedro Adão e Silva, in Expresso de 15 de Outubro]
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[“Já basta e ofende a desculpa da herança do anterior governo. Primeiro, porque juraram que não o fariam; segundo, porque só mostra que nada sabiam do estado do país e não estavam preparados para governar, mas apenas para ocupar o poder; terceiro, porque, que se tenha percebido, o tal buraco inesperado de 3 mil milhões decorre, todo ele, da privatização do BPN, nas condições definidas por este governo, e das dívidas escondidas do querido Jardim, criatura emérita do PSD.” Miguel Sousa Tavares, in Expresso de 15 de Outubro]
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[“O homem não está bem...
Este argumento já não se explica apenas com o facto de o homem ser aldrabão. O problema é bem mais grave e terá de ser tratado no foro clínico próprio. O homem não é apenas incompetente, é absolutamente inconsciente e os seus actos transformam-no num criminoso. Talvez inimputável, mas CRIMINOSO!
Há coisas que ficam bem claras.
-Os funcionários públicos nunca mais vão receber subsídios de férias e Natal.
-Dentro de seis meses o governo anunciará novas medidas de austeridade.
- A economia portuguesa ficará arruinada por décadas.
-O desemprego subirá em flecha.
- A pobreza aumentará de forma desmesurada.
-Os bancos ficarão empanturrados com casas devolutas, que não poderão vender, porque não há dinheiro para as comprar.
-Os jovens apenas terão um futuro: emigrar!
Isto não é o Apocalipse... é o fruto da incompetência e inconsciência dos nossos governantes.” Carlos Barbosa de Oliveira, no seu blogue CRde 16 de Outubro]

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Do Mwata

O Tempo
Já lá vai o tempo em que o Tempo me dava tempo.
Agora, não. Já pouco me cede, e nem por empréstimo se alarga um coche que seja, antes se encolhe. Magoa-me, dói-me.
Para além dos padecimentos físicos, põe-se a arranjar-me outros. A ele não lhe falta o tempo para me mortificar, e passa o tempo a dissimular como um fingidor.
Ora me diz que sim, está tudo bem, abrindo-me alentos, ora me amanhece com penares e interrogações, ora me inquieta e desassossega o sono despertando-me com outros oras, roubando-me o tempo do retempero. Quer que eu caminhe sem andar, que ouça sem escutar, que veja sem enxergar, que chore sem lágrimas, que ria sem riso, que grite sem voz, que sonhe sem sonhos, que sofra com dor. Que me zangue sem ira. Que seja inútil e estéril.
Só não diz, nem disfarçando, a que tempo se irá o Tempo.
Mas, o que seria dele sem mim? Nada!
Tenho razão e coração. E ele? Falta-lhe uma coisa, desconhece a outra. Ouço e gosto de ouvir e ver. Olhar o dia, que me traz a luz, os sons e os odores lá de fora, a chegar-me de manhã pela janela semi-cerrada, às vezes de madrugada, e, quando é Primavera, a deixar-me acompanhar o esvoaçar das andorinhas à procura dos beirais, pelo ar aos arrebiques, pintando-me o carro com os seus dejectos ácidos, ou de ver o vizinho que calcorreia, rápido, a rua a caminho da nova pastelaria em busca do croissant acabadinho de sair do micro-ondas. E mesmo no Inverno, quando chove e graniza, ou a luz não é a do Sol mas a de um relâmpago. E ele? Que vê ele?
Quando choro de dor, do magoar que ele insiste em pegar-me, tenho uma mão amiga que me afaga a face, me olha nos olhos e me sustém as lágrimas. E ele?
Quem lhe dá um ombro suave para repousar a cabeça e lhe fala de coisas simples como pagar a conta da água ou do gás, cada vez mais caras, ou prenuncia a discussão que está para chegar e não atira as zangas para amanhã; das compras a fazer vinda a bonança, ou, ainda, das férias que se hão-de gozar, dando-lhe a consciência de que ainda vive?
Andou ele, alguma vez, por poças de água de caminhos molhados. Deitou-se ele, alguma vez, no capim encharcado depois da chuva? Quando bebeu ele água das lagoas ou rios, depois de neles ter mergulhado, levando-a à boca com as mãos? E o funge, o pirão e o jindungo? Sabe ele o que são? Jogou ele, alguma vez, de pé descalço, com bola de meia enchida de trapos e sumaúma na diloa dos musseques?
Amou ele, alguma vez, ao luar filtrado pelas casuarinas sobre a areia da praia, arfando de amor?
Ouviu ele, alguma vez, o riso ou o choro de uma criança do mesmo sangue, mais lindos do que os brilhos das estrelas, encostada ao peito, aonde se aconchega para um sono tranquilo e seguro?
Teve ele, alguma vez, tempo para tudo isto? Não, só para me tirar o tempo!
Entre mim e ele corre tudo o que nos separa.
Quem o inventou, quem o trouxe para o meio da gente?

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Mercados


Gosto de Mercados. Aonde me desloque, desde que os haja, não deixo de por eles passar, espiolhando-os de alto a baixo. A que propósito vem isto? Não sei, talvez seja ainda resultado do choque que senti ao ouvir num canal televisivo um espectador dizer, a propósito do aumento da electricidade: "Está na altura de pegar em armas e darmos cabo deles todos", ou uma maneira de fazer com que a crise desconsiga envolver-me. Vou hoje falar-vos de um. A 17 quilómetros de Luanda, na estrada para Benguela, está Benfica e o seu Mercado do Artesanato, também conhecido pelo 17.
Para além dos trabalhos de artesãos, em madeira, verga, vimes, tecidos, conchas, marfim, ossos e metais, e de criações plásticas a óleo, ou aguarela, em telas e sobre areia colada em estopa, ali se vendem papagaios, periquitos e outras aves exóticas, macacos, chimpanzés, cágados, tartarugas, pombos verdes, passarinhos e mais bichezas, por vezes até sengues, (um sáurio grande aparentado dos crocodilos) e, também, peles de onça, leão, crocodilo, lagartos, jibóias e outros répteis.
Vendem-se dikosos de quimbandas e de outros curandeiros, benzedeiros e exorcistas, como pós de cheirar e queimar, ervas de fumar e fluidos de esfregar, recicladores deles e desabrochadores delas. Os «papás»(tratadores de enfermidades e debeladores de azares) trocam por dinheiro, amuletos espanta-espíritos-maus, invocações de curar males e atavios das almas, como fotografias do Papa João Paulo II, que peregrinou por Angola em Junho de 1992 (provavelmente agora também já se comercializam as do actual chefe dos católicos Bento XVI), tudo embrulhado em grandes sorrisos, as mais da vezes sem dentes, mãos cheias de bons conselhos e sussurros de abuamar o mais seguro dos espíritos. Com paciência e um pouco de diplomacia de conveniência (uma cerveja, um maço de cigarros e, ainda melhor, uma nota de dólar) conseguia-se (consegue-se?) que um ou outro dos curandeiros falasse dos seus processos de tratamento das mais diversas maleitas: uns, puramente mágicos; outros, com recurso a preparações estranhas de diferentes ingredientes nunca revelados porque no silêncio guardam eles a arte do negócio; outros ainda invocando vontades divinas. Alguns até bungulando para maior efeito.
Os mercadores eram (serão ainda?) angolanos e zairenses, estes em maior número e dominando, sobretudo, as bancas dos marfins e ossos a imitá-los, (sendo necessário olho aberto e tacto apurado para se fugir ao engano) e das malaquites e outros ornamentos metálicos. Têm, ainda, liamba e peças antigas de arte Tchokue, Kioka e Bakonga,  verdadeiras relíquias roubadas de museus da região das Lundas, no Leste de Angola. Como os seus camaradas da antiga Constantinopla, que iguais continuam hoje na actual Istambul, nada vendem sem discussão de preço, começando, sempre, por um «oferece amigo», enfatizando o vocábulo da afeição.
Angolanos (poucos), e estrangeiros (muitos), em especial portugueses, a trabalharem nas estruturas militares e civis das Nações Unidas, ONGs e em programas de cooperação, eram os seus frequentadores, dele fazendo destino obrigatório, aos fins-de-semana, em particular aos domingos, que os preços eram mais baixos ao fechar da feira.  A maior parte, para lá rumava, na busca de uma recordação, ou de qualquer coisa para oferecer, no regresso à terra. Outros, por ali apareciam para rever conhecidos, saber novidades, trocar informações, reacertar memórias, recuperar afectos perdidos, conquistar amores novos..., que as kafekas abundavam! Foi no 17 que conheci, e conversei pela primeira vez, com Fernando Nobre, o urologista da AMI, candidato derrotado à Presidência da República e rejeitado depois  pelo Parlamento.
Dele se falava assim: vamos ao 17. Em tom intimista, como se de um amigo se tratasse. E tratava, pouco importando o lixo, o calor estorricante, as cubatas fedorentas envolvendo-o, ou os bandos de putos, esfomeados e esfarrapados, alapando-se aos carros, fazendo da nossa chegada uma festa. Nada nos aquietando, outrossim, o regresso a Luanda, ao pôr-do-sol, com passagem pelo Musseque Rocha Pinto, durante muito tempo uma zona de alto risco, onde eram frequentes os assaltos com armas de fogo, a viaturas por lá circulando. Escapei a dois.
Desculpem. Prometo curar-me.

domingo, 2 de outubro de 2011

Do Mwata

Regresso

Tem andado por caminhos desassossegados, num tempo fora da história. Trilhos sem bermas nem atrás, chão de ontem. Quer avançar por entre as árvores sem sexo, libertar-se do exílio intoxicante do ócio. Envia à frente o olhar percorrendo-lhes os troncos deixando-o, depois, a repousar na folhagem, uma seca, esmorecida, outra, como a dos cajueiros, ou das jacas mais altas, tremelicando, soltando gemidos quando lhes bate o sopro das noites perdidas na busca do tamanho de si próprias, e ensandecidas.
“É chegada a urgência de reparar, de combater a cegueira. É preciso combater as sombras”. Ouve ele. Que fique de lado a sagacidade do silêncio, acrescenta.
Tem como certo, que as palavras necessitam, a mais das vezes, de outras que as ajudem a explicar-se. Enquanto aguarda, libertam-se das lutas do pensamento, enxameando o mar por onde xinbica no dongo do seu interior, guerreiros sem terra, pelejando, pelejando…Combatentes perdidos, não sabe por onde, que decidem não guardar-se nem no silêncio, a um tempo temeroso e aventureiro, nem no vociferar sem voz, que quando lhe chega soa a vazio. Que guerreiros são estes, parecendo entregues ao esfregar do esquecimento, lançando-se para o abismo?
Está ali de pé, olhando o lago a que agora aporta. Mete-se por ele, em busca da memória. Encontra-a prostrada pela fadiga. Esforça-se, mas nada readquire. Dos bicanjos da lembrança tudo partiu. O que ele encontra é uma camereca mal disfarçada, chiprulenta de si, num chapiango atroz e intolerável que o quer deixar no vazio, submergido por uma enxurrada de sombras, levando-o, a chicote, pelos caminhos que a vida diz ter. Vida lassa. Essa, não é a sua. Até agora tem vindo a juntar, hora a hora, o que cada uma foi dizendo e fazendo, e nunca de uma única que fosse se separou.
Então, apodera-se dele um zamberenguenjê.
Decide voltar ao ponto de partida.