quinta-feira, 22 de julho de 2010

São só uns dias

Vou para o sol, cores, odores e cantares do Alentejo, esperando que Pedro me não pregue uma partida. Procurarei a sombra de um chaparro, para sob ela me sentar, fumando um cigarrito (pois é, já sei…) e lendo. Querem saber quem levo para ler? Digo: Pessoa, Mia Couto, Auster e Saramago. Viajarei pela gastronomia, e, se a água me não gelar os ossos, e as dores forem de férias, darei umas braçadas na piscina. Andarei pelo campo, pondo à prova, uma vez mais, a resistência das canadianas. À noite perguntarei às lantejoulas do céu se alguma delas tem algo para me dizer, qualquer coisa como, sei lá, já que vivem lá por cima, se acham que ser Deus é fácil ou difícil, estando eu em crer que deve ser tarefa espinhosa, especialmente agora que a crise anda por aí.
Por cá ficarão o portátil, a televisão, a rádio e os jornais.
Os próximos dias serão para abafar o bulício, para me ver livre dos emperuados: políticos, comentadores, analistas, politólogos, correlativos e jornalistas aprendizes de feiticeiros, que passam a vida num gluglu, inundando a capoeira com uma chinfrineira que nem eles entendem.
Parto já com a saudade do vosso contacto, que durante uns tempos ficará por acontecer.
A todos um abraço, e, se alguns se puserem também a caminhar, que as vossas andanças vos proporcionem tudo de bom. Regressarei nos primeiros dias de Agosto.
Deixo-vos este poema de Mia Couto:
Saudade

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternuras
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés.
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.
Seja eu de novo a tua sombra,
teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula,
raiz exposta.
Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.
(Mia Couto)

domingo, 18 de julho de 2010

Palavras

é o que as palavras simples têm de simpático, não sabem enganar.
(José Saramago
)

Assim num de repente, não mais que isso, num de repente, as palavras vieram visitar-me. O encontro foi depois do almoço a dar para o mar. Estavam escritas nuns azulejos atarraxados às rochas, olhando para mim, de mãos postas no tempo que as criou.
Disseram o que quiseram, falaram na língua que lhes aprouve. Escutei-as, em mancebia com o marulhar. Li-as. Encontrei-me nelas, que mais não sou do que um país que outra pátria não conhece se não o mundo.
Disseram-me elas, que até ali chegarem navegaram por mares por onde o passar dos dias as levou, sem que eu saiba quem as inventou, que a tempestade não escolhe porto.
Olhei para as gaivotas, muitas em terra, e recolhi ao meu porto de abrigo, fintando a procela, iludindo as dores que me quiseram visitar!
E porque as palavras são pródigas, e, quando o queremos, também solidárias, desejo a todos uma boa semana, que se prepara para trajar de Segunda-feira.

sábado, 17 de julho de 2010

Do Viajante


Memórias (2)
(De gentes e coisas, que conheceu no extremo Norte)
- Continuação do post anterior -


Por Zefa trata o padre a mulher do Sul.
Conheceu-a quando lhe encontrou os episódios do ser, o que lhe pareceu serem as feridas da vida. Viu-a como a Virgem Negra, por ela se seduziu. Mas a senhora Josefa é terrena, de mente sã, serena como a coisa pura, mulher de um só homem, o seu Simão, que, mesmo padre, é seu. Com isso o Deus dele não se importará, tem ela por certo. Josefa cedo se deu à reflexão sobre a vida e os seus absurdos, atribuindo ao Destino o seu encontro com Simão, que lhe tocou a alma e a fez caminhar por uma alameda onde as flores dos cajueiros são pássaros de paz. Por isso cruzou a sua com a picada dele, tendo a sua vida começado naquele instante. Fez do padre a sua cubata. E ele dela o seu retiro.
Dela tem ele uma filha, Clara de seu nome, a condizer com a tez próxima da do pai, hoje com dezasseis anos, a viver em casa de uma tia e a estudar no liceu da capital do distrito, lá mais para Norte. A rapariga, uma linda mestiça, ali a provar que o cruzar de sangues gera, quase sempre, obras-primas, está de férias. Viverá com a mãe durante toda esta semana, e com o padre, que sabe ser seu pai.
Ontem, ao fim da tarde, uns negros de passagem encontraram-na deitada no capim, encostada à parte de fora do muro do cemitério ao lado da igreja, com um homem por cima. Gritaram Ué…! Nenhum dos dois se inquietou. Ele, que apesar de ter ocultado, de pronto, a cara num tufo de capim mais alto, um dos mirones jura ser o senhor gerente da Casa Comercial, por estar convencido de que os negros, que para si trabalham, não falarão. Ela, por razão nenhuma em especial, talvez apenas por não estar ainda em idade para inquietudes. Mantiveram-se no que estavam.
Os passantes benzeram-se e, ala que aqueles propósitos em que está a filha do senhor prior não são para os seus olhos, puseram-se a andar.
Andar não foi bem, porque de uma corrida se tratou. Um sair veloz e atabalhoado sobre um carreiro de mandioqueiras a crescer, calcando-as. Ali não crescerão as mandiocas. As mulheres da sanzala não as tirarão da terra, para as descascarem e porem a fermentar num charco de água, até que o cheiro, sentido à distância, avise ser tempo de as levarem a secar ao sol, para depois as moerem fazendo nascer a sempre desejada farinha de fuba, indispensável para o funge que acompanha o pirão de peixe seco com que matam a fome.
Contrariando o que o gerente pensara, nem todos os mirones se quedaram pelo silêncio. Do acontecimento no muro do cemitério correu notícia.
Meia cidade fez cara de escândalo, pelo menos assim pareceu.
A outra metade encapou-se num resguardado semi-silêncio.
Receosa de despertar memórias de outras conjunturas, sabidas do velho padre, e de outra gente, como de Paulo o amigo do padre que um dia destes aqui aparecerá, só falou do caso por alto, em surdina pelas esquinas e pelas mesas dos dois bares e da pensão, e, mais em aberto, acrescentando minúcias apimentadas, maquinadas a cada momento, nas liturgias a horas avançadas dos serões privados.
Numa ou noutra sala de estar, e em varandas a dar para jardins com Lua, duas com sentinela à porta para além de mosquitada e outra bicharia, como é o caso do palacete do Administrador da terra, se fizeram cotejos.
Crente em Deus, tal como no amor e no despertar para a vida, Simão, indulgente, abandonou a melancolia em que ultimamente tem vivido, e absolveu a filha e o gerente. Disse a missa no Domingo seguinte, o primeiro dia das festas da cidade. Como sempre a igreja foi exígua para tanta gente.
(continua...)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Do Viajante


Memórias (1)
(De gentes e coisas, que conheceu no extremo Norte)


Quatrocentos e alguns quilómetros depois da partida do litoral, já lá vão, a estrada de terra batida, as florestas e as matas verdes e densas. Agora, circula-se sobre os trilhos de uma picada, que mal se vê, serpenteando por entre extensos areais, à conquista da planura árida, dominada por embondeiros, espinheiras, cactos candelabros, maboqueiros e arbustos meio secos. Zona de caça grossa, diz o motorista, levando a mão à espingarda arrumada ao alto, atrás do encosto do seu assento. Do leão apenas escutam o rugido de rei, que os faz tremer. À vista só uma pacaça que, pachorrenta e indiferente, mas de virar de cornos ameaçador, atravessa a picada.
De quando em quando pequenos vórtices aspiram o solo, lançando ao ar areia fina e folhas secas, parecendo que anda por ali uma pua gigante a querer penetrar o chão. Ao entardecer o verde regressa à paisagem. Atravessam um palmar, no fim do qual o caminho corta a meio uma sanzala. Dum lado e doutro, crianças e mulheres, estas com cachos de dendê à cabeça – algumas também com bebés às costas, seguros por panos amarrados ao peito –, acenam-lhes. Por aqui já se vêem cajueiros, mangueiras e um bananal. Mais ao fundo avistam-se árvores de maior porte. Umas são eucaliptos-gigantes, outras panga-panga e abacateiros, a avisarem da proximidade da cordilheira que terão de conquistar em rota para as terras altas, de forte vegetação e das grandes chuvas – a região do café, a que chamam, igualmente, os campos do ouro negro. Sobre o horizonte recorta-se o cume da serra mais alta, envolto por um anel de nuvens brancas, como se a Natureza estivesse em pedido de casamento.
Chove a cântaros. São sete da manhã, mas parece noite. A cortina de água, cor de chumbo, cobre o mundo à volta. Faíscas chispam por toda a parte, iluminando o céu, como se a espátula de um pintor ande por ele, ébria, marcando-o com ziguezagues de fogo, quase o incandescendo. Há meia hora que o tumulto da natureza persiste violento, obstinado.
Finalmente, o destino. Para trás ficaram cinco dias de viagem esgotante. De Sul para Norte inicia-se a descida da rua principal da cidade (assim dita, mas que não passa de uma aldeia a querer ser gente) transformada num mar de lama, com a água correndo tumultuosa, descontrolada pelas bermas, como rios soltos por diques deitados abaixo e, com eles, algumas cubatas.
Ali conheceu o Viajante, pelo ano que por lá esteve, coisas e gentes.

I

Simão, o padre da pequena corcunda, que transporta entre esta e a camisola interior, endurecida pelo surro que lhe ensopa o suor, um amarelecido e salgado breviário engatado ao pescoço, é um homem de urgências, não espera por Deus. Sem que lho peçam, basta que lho digam, lá parte ele, a pé ou na sua velha moto com side-car, a levar o Viático aos doentes ou a tentar faze-lo aos que maltratados por ordem dos pides são atirados, por estes e pelos sipaios, para o capim alto nas bermas das picadas escuras para que a bicharada os leve, antes ou depois que a morte os apanhe. Simão não perde nunca a oportunidade de conquistar uma alma. Bem cedo, nas manhãs dos dias de semana, vai à sanzala, ali mesmo a nascer do outro lado da rua, buscar três putos para os levar à escola. À tarde faz o mesmo percurso, a deixá-los nas cubatas. Pelo almoço, cuida que um pequeno farnel lhes chegue.
Assim vai ele, com parte do seu rebanho.
E ainda tem a crescer alfaces, feijocas, tomateiros, um pé de jindungo e outro de caxinde, num canteiro, por si criado em sete manhãs de desvelado exercício de mãos e pés, no quintal da igreja, ao fundo, junto ao poço. Os agriões, acredita, mais tarde ou mais cedo, acabarão por alçar nas margens do fio de água que ele cavou para a rega. Muita fé e nada de agrião, que não há meio de crescer.
Contudo, nem tudo é perfeito.
Desde a chegada, o velho padre Simão habita o presbitério, contíguo ao templo, com uma negra oriunda do Sul, enérgica, trabalhadora, boa cozinheira, respeitadora, um compasso do tempo mais nova do que ele. Depressa se afeiçoaram. A mulher fez-se uma ajudante preciosa, indispensável. Das lides da casa passou a outras. É certo que não ajuda à missa nem auxilia o pároco nos ofícios divinos, mas mantém a sacristia impecável com os paramentos sacerdotais e os utensílios de culto limpos e arrumados. Aprimora-se no arranjo do altar, renovando, amiúde, os quatro ramos de flores, dois de cada lado do sacrário. Dá luzimento, todas as semanas, ao madeiro do Cristo crucificado. Mantém a brilhar os castiçais de metal fundido, sem deixar que os círios se esgotem. Verifica, dia a dia, o nível da água nas pias baptismais. Muitas vezes é ela que puxa as cordas para fazer dobrar os sinos, um esforço agora demasiado para o eclesiástico de corcova às costas.
A igreja nunca teve sacristão. Assim se mantém.

(continua...)

sábado, 10 de julho de 2010

Memórias

A minha cidade

Aqueles homens altos de músculos desenhados, salpicados por gotículas de mar, que ali estão, são pescadores. Pés bem fincados na areia puxam as redes com o peixe para sustento do dia seguinte. Algum dele haverá de seguir ruas fora, poucas ainda, ao longo de escasso e disperso casario pela cidade acima, em quitandas à cabeça de quitandeiras (deles mães, irmãs, mulheres e filhas) que lhe apregoarão virtudes alimentares e preços baixos. Fá-lo-ão do despertar ao morrer do dia, vezes sem conta, entre a Fortaleza do Morro de São Miguel e a Igreja mais tarde chamada da Conceição.
E, também, ao longo da zona baixa da cidade, a que em 1648 o português Salvador Correia de Sá e Benevides chamou São Paulo da Assunção de Luanda, – uma faixa de casas de um lado, e mar do outro –, que se estendia da base daquele morro até à Ermida da Nazaré.
Tudo assim conhecido, excepção feita à designação de Salvador Correia que só aconteceria mais de cento e setenta anos depois de ter chegado à Ilha das Cabras (assim se chamava a que hoje é Ilha de Luanda) um outro português: Paulo Dias de Novais, descobridor ali mandado por seu Rei D. Sebastião para conquistar o Reino de Angola, corria o ano de 1575.
O que Dias de Novais fez, aportando à Ilha com uma armada de oito barcos (um galeão, duas caravelas e cinco bergantins), e acompanhado de setecentos homens, nem todos soldados, pois entre eles havia sapateiros, alfaiates, pedreiros, cabouqueiros, taipeiros, um barbeiro e um entendido em Física, suspeitando a História que entre estes muitos acabaram por aprender o manejo das armas.
Para que mal de todo se não sentisse em tão intrépida missão, el-rei concedera-lhe, ainda em Lisboa, uma capitania e investira-o no cargo de Governador e Capitão-mor da Conquista do Reino de Angola. Precavendo-se de uma possível escapadela da fé, no contacto com os nativos, e, também, em obediência aos ditames da Corte e da Santa Madre Igreja, o conquistador levou consigo um sem número de sacerdotes, paramentados a preceito e de crucifixo numa mão, espada na outra. Ao que se julga saber, Dias de Novais ficou a residir na Ilha durante um ano, tempo que levou a perceber ser aquela terra rasa, sem montes e baixa, que pouco se alevantava sobre o Atlântico, feita de areia e vazia de água para consumo de homens e animais. Imprópria para nela se edificar a capital de uma conquista. Abandonou a Ilha ao fim daquele tempo, mudando-se com a sua gente e barcos para o continente, mesmo em frente dela. Ali começou Luanda a fazer-se.
Dias de Novais não viu a cidade esticar-se. Não espreitou as garinas de São José de Cluny, não provou a doçaria, os pasteis de bacalhau e o leitão assado da Royal, não petiscou a dobrada com feijão, roeu a ginguba, mastigou os tremoços e bebeu os finos da Bicker nem aqui jogou bilhar, não comeu o Bacalhau à Vilela, nem o Frango na Púcara da Maianga. Não saboreou os cacussos, o pirão, o vinho verde tinto de garrafão/capacete, produzido em Portugal (dito de tal modo por o garrafão ter um chapéu de gesso a envolver-lhe o gargalo), e a Nocal (cerveja feita em Luanda) da Cagalhosa – a cabo-verdiana patroa das meninas de passe do Bairro Operário, sempre atenta aos clientes. Os caluquetas, tal como a muamba, ficaram-se-lhe por provar. Não foi à Versalhes tomar chá com torradas de pão de forma, nem comigo comprar banana seca, tâmaras, nozes, pinhões, avelãs, amêndoas francesas e outras delícias à mercearia fina Paula de Carvalho. Não se deliciou com as cassatas do Baleizão.
Ficou sem ver os rijos tremunos entre a rapaziada do Colégio D. João II e a do Liceu Salvador Correia, que acabavam invariavelmente em cenas de pancadaria, sem que qualquer das partes cantasse vitória, antes apostasse, casmurra, em novos jogos, com galhardetes, pedras e paus a voarem no final, de um lado para o outro, e as miúdas, babadas a aplaudirem, desfazendo e refazendo namoricos, ao sabor das más ou boas prestações dos artistas da bola, os seus heróis! Já não teve tempo para me ver saltar os muros do liceu, fugindo às aulas da Mocidade Portuguesa e refugiar-me nos estúdios do Rádio Clube de Angola, no outro lado da rua ao lado do Cinema Tropical, onde me comecei a deixar seduzir pelo jornalismo, ouvindo e lendo coisas diferentes das que os milicianos das quinas e falanges de fardas com um S no cinto queriam, à força sem o conseguirem, que eu aprendesse.
Não viu negros serem explorados, maltratados, presos e mortos. Como também não viu a PIDE perseguir e prender brancos, e muitos eram, que àquilo se opunham.
Não conheceu o meu Mwata Milagre, nem a Kyanda, nem o meu professor Cardoso, da primária. Nem o meu amigo e colega da Escola 8, o negrinho gordo e brincalhão a que, por alcunha, chamávamos o "Gungunhana". Tão pouco o meu amor.
E as rebitas de Sábado à noite, nos quintais mussequeiros? Também não! Não subiu à Fortaleza e dali ficou a ver o pôr-do-sol como não há igual.
Não deu por Luanda a crescer para lá do Kynaxixe.
Não viu homens e máquinas drenarem a lagoa, secarem-lhe as lamas, derrubarem a mafumeira, erguerem um mercado municipal a um dos lados, e construírem ao centro uma praça colocando-lhe no meio a estátua da heroína popular portuguesa Maria da Fonte.
Também não viu, depois da independência da terra, chegarem ali os revolucionários, que destruíram a Maria da Fonte, varreram os cacos para a rua como lixo, e colocaram no seu lugar um carro de combate! E, não satisfeitos, deixaram que a cidade fosse canibalizada.
Não viu, igualmente, anos mais tarde, os rebeldes já mais amansados, retirarem a máquina de guerra, deixando a substitui-la uma pomba feita de madeira e ferro, a «simbolizar a paz», enfeitada com centenas de pequenas lâmpadas semelhantes às das árvores de Natal, iluminando-lhe o peito, a cabeça e o resto do corpo durante a noite. Nos primeiros dias, que depois os filamentos foram-se fundindo e as luzes apagando, sem que alguém se preocupasse com reparações.
A pomba da paz por lá continuou uns tempos, triste, vendo passar as noites e as tardes cinzentas de Cacimbo, faltando-lhe o brilho para bater as asas. Um dia desfez-se em lascas que tombaram na praça, ali ficando a ser espezinhadas.
Coberta por bruma espessa, a História por lá morreu.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Memórias

O meu Mwata

No Cacimbo, a água da Lagoa chegava a ser transparente. No Calor, como era o tempo em que para lá íamos, ela ficava turva, do tom da terra vermelha da zona, e, também, mais alta. A Lagoa enchia, prenhe das chuvas grandes do nosso fascínio.
Sempre que aquelas águas caíam e nós, os putos da Escola 8, andávamos por ali à solta, os calções e as camisas juntavam-se às sandálias nas sacolas escolares. Todos nus corríamos de um lado para o outro, caras viradas para cima. Bocas abertas, bebíamos o céu deixando a água fresca tanger-nos as gargantas e voltar a sair, correndo-nos pelo peito, excitando-nos o coração de meninos mais valentes do que os heróis das histórias do Mosquito.
Éramos capitães de um só medo: pisar a água da Lagoa sem antes ouvirmos o Velho. Só ele sabia se a surucucu andava por ali naquele dia, ou não.
E, outras coisas!
O Velho, – o Mwata de nome Milagre –, homem de servir em casa dos meus pais, que pouco servia, mas muita companhia fazia, a mim em especial. Também ele se evadia para a Lagoa, sempre que podia, para falas com os «mininos da Escola». Magro e seco como um abacateiro, igual aos que nas roças crescem esguios até ao Sol, lá abrindo a copa maior que um capacete colonial parecido com o que o meu avô usava, protegendo com a sua sombra os cafeeiros de muitos braços carregados de ouro negro, que faziam a riqueza de uns quantos, e aprofundavam a escravidão e miséria de muitos outros. O Milagre era alto como as mangueiras da Funda agora mirradas, vá-se lá entender isto, e velho como um embondeiro. Tal como este, já nem sabendo a idade ou mesmo se menos velho alguma vez tinha sido. O meu Mwata nascera já assim, de certo: com idade crescida, e sábio, porque ele sabia de tudo. Muito me ensinou, como a ser solidário e a respeitar os mais velhos. Sendo ele bom mestre, e eu razoável aluno, aprendi.
Com o Milagre, ficávamos até a tarde avisar serem horas do regresso a casa. As suas mãos secas de dedos finos e compridos como os dos artistas, esculpiam no ar histórias de encantamentos, que escutávamos seduzidos. De quando em quando interrompia-se, quedando-se em silêncio a fumar um cigarro enrolado com a parte acesa virada para dentro da boca, como fazia a lavadeira da minha casa enquanto esfregava a roupa com o filho dormitando agarrado às costas por um pano envolvendo-lhe o peito.
Às vezes, o Milagre alçava os braços.
Não entendia porque o fazia.
Pareciam-me impulsos do coração do Velho, em busca de mistérios perdidos ou de acontecimentos para anunciar, lá por cima, nas terras de Deus. Olhava-o, a ver se sim, mas permanecia inescrutável. Não resisti. Um dia, perguntei-lhe:
- Porque te chamas Milagre?
Virou-se para mim. Ameigou-me o queixo e o cabelo com as mãos. Levantou-me suavemente a cabeça. Deixou repousar os seus olhos nos meus, e respondeu:
- Porque Deus me fez, e a minha mãe me disse assim!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Pedido de ajuda


Tenho recebido comentários, que não consigo editar (moderar)! Quando clico para os abrir, desaparecem, surgindo isto: não há comentários a necessitar de moderação! Como nas definições coloquei a indicação dos comentários me serem também enviados por email, a verdade é que os recebo e os tenho gravados no registo do correio electrónico. Colocá-los na caixa de comentários do blogue é que não. Somem, pura e simplesmente!
Alguém me pode dar uma ajuda para resolver este mistério blogosférico!

(Aos amigos que não viram os seus comentários publicados, peço que, se para tal tiverem paciência, os repitam, a ver se o blogue perde a má disposição de que parece estar possuido. Obrigado)
PS- Quero dizer-lhes que para este post já recebi um comentário do blogue Reflexo d Alma, que consegui editar, bem como a minha resposta de agradecimento. A seguir recebi outro do blogue Rosa Carioca, que desapareceu. Respondi. O primeiro comentário e as minhas respostas chegaram a ser editadas. Agora, de repente, desapareceu tudo! Irra! Será que andam por aí bruxas à solta?!
PS 2 - Continuo a servir-me desta página para comunicar. Novo comentário chegou. Veio da Si. Obrigado, Si, vou fazer como diz. Já corrigi a etiqueta! Grande gralha! Muito obrigado.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Do Viajante


Entre o que foi, e o que é.


Arrimado ao tronco alto e magro, olhando fixamente o manto de prata acabada de arear, com que o mar hoje se cobre, ele sente-se, tão só, uma pequena ilha encalhada algures no tempo.
A silhueta, vista daqui, assemelha-se à de gente no vigor da idade. Olhando-a de mais próximo, encontra-se-lhe um semblante carregado de vida, que nada mais deixa perceber, embora num ver mais atento se encontre alguém que não tem gasto o tempo em urgências.
Escuta-se-lhe o respirar da sombra ondulante da casuarina, a cuja frescura se acolheu.
Lá por cima, em surdina, planam gaivotas transportando nas asas o cheiro a maresia. Mais abaixo esvoaçam gaivinas com queixumes fortes espantando os quero-quero.
De tudo parece alheio.
O bater do mar liberta-o da fixidez. Mais se encosta ao peito da árvore sulcado por risos e lágrimas de resina, soltos e vertidas dos muitos anos que leva de vida, vida de cuja idade se não tem notícia. O aconchego dá-lhe ímpeto. Levanta-se. Caminha pela areia, senta-se numa trança da praia. Quer abraçar o mar, mas deita-lhe apenas as mãos. Ao levantá-las vê escorrer, por entre os dedos lassos, raios de luz parecendo-lhe janelas abertas por onde se lhe escapam palavras, umas mudas, outras sussurrando ausências. Fica olhando-as. Hesita entre tirar a pele às palavras ou pedir explicações ao raiar da aurora, hoje por entre uma névoa fina, trazendo o sol ainda timidamente quente.
Sussurrantes, não de ausências, mas de segredos, recorda-se, foram as palavras ditas, não muitas, na noite passada, depois dela chegar, cabelo solto caindo-lhe sobre as costas, rosa vermelha ao peito, sorriso nos lábios, brilho nos olhos, mãos prometendo carícias. Mais foram os afagos trocados antes dela partir, do findar da noite a ter levado para outros ires. Na boca dele, deixou ela um beijo e a rosa. Ele disse hoje, pela primeira vez, beijei o céu.
Agora, rola pela trança da praia. Volta a dar os dedos ao mar e, ao recolhê-los, vê, por entre eles, pétalas de uma rosa vermelha.
Distante, ela caminha para outra noite, com nova flor ao peito.
Ele continua, entre o que foi e o que é, procurando um futuro fora do crepúsculo.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Dores

Aos visitantes da minha cubata, aos amigos.

Tal como um artesão que com afã desbasta a madeira para lhe dar forma, e dali fazer obra que se veja, tenho passado os dias (e parte das noites) a tentar civilizar as dores, a ver se acabo com o constante desentendimento, mesmo rivalidade, entre mim e elas.
As dores, incómodas, inoportunas, inibidoras, quais jagodes, persistem na batalha. Desviando-me da conservadora e tradicional prescrição médica, tenho procurado as minhas picadas, por elas andando, ensinando o corpo a fugir das tendinites teimosas e a evitar a chamada à liça de músculos pouco dispostos a esforços, ou dominados por fibroses resultantes das quinze cirurgias já feitas.
Descobri que uma posição estudada, embora fugindo à normal postura do esqueleto (a que médicos torcem o nariz), resulta, quase sempre, mais eficaz que um medicamento a droga manipulada com o objectivo de curar, mas que a mais das vezes se fica pela intenção. O meu objectivo tem sido o de evitar o conflito das articulações, quer da anca esquerda que já vai na quinta prótese, como do joelho do mesmo lado que, desgraçado, se vê em papos de aranha para responder ao esforço suplementar que lhe é exigido. Desta aprendizagem não resultou obra perfeita, mas já colhi alguns frutos. Entro e saio do automóvel, conduzindo-o com todo o à vontade. O segredo está em não torcer o corpo, mas em rodá-lo como estando sobre esferas oleadas. Sentado, as dores ausentam-se, só surgindo de pé, ao tentar o passo sem as canadianas, ou após duas ou três horas de estar deitado, acordando-me, claro! Qualquer distracção no manejar suave e atento do corpo e pronto, lá vêm as dores aos gritos! Apesar das dores por vezes serem de tamanho a que é difícil deitar a mão, continuarei pelas minhas picadas até que numa próxima ida ao cirurgião este possa descobrir novos caminhos.
Longe vai o tempo de me encolerizar, e ainda bem. Se assim não fosse passava a vida numa irritação permanente por, não sofrendo de qualquer doença, padecer de uma “falha mecânica” que me tolhe.
Para além de tudo o que são, as dores têm, ainda, a imaginação como coisa malquista. O pensar esgota-se-me na procura de as amainar. Esta tem sido a razão da minha ausência. Agora, um pouco mais senhor da situação (aprendo a viver com a dor) está a regressar o tempo de voltar ao vosso convívio, que muito prazer me dá.
Desculpem o arrazoado.
Um obrigado a todos os que se manifestaram preocupados.