A Eva promove no seu blogue um “Concurso de Escrita Criativa”. Como regra única, o tema a concurso deverá ter como título o nome de um dos seus blogues. Opto pelo que está ali em cima e pode ser visitado indo-se por aqui. Não sendo obrigatório que o trabalho seja original recorro, para participar, a um texto já publicado no Conversas Daqui e Dali.
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Assinatura reconhecida
Pelo caminho se meteu. Ao fundo, deu com uma casa meio acubatada, duas tábuas a darem ares de porta. Forçou a abertura, sem o conseguir. Caiu-lhe em cima uma tabuleta. Leu o que escrito estava, em linhas meio enviesadas: “aqui vive Deus, em recolhimento, meditando, não entre.”
Obedeceu.
Três dias depois voltou à estrada. Caminhou pelo primeiro desvio. Deu com um portão de ferro, de cadeado franqueado. “ Reino do demo”, leu numa chapa chamuscada e meio amolgada, “faça o favor de entrar”.
Rejeitou o convite.
De regresso a casa, pôs-se a cismar. Assim ficou sete dias inteiros. Ao oitavo, voltou às andanças, por um carreiro de poeiras, desta feita. Uma vida depois parou. Sacudiu o pó, limpou os olhos. Aquilo não era cubata, nem casa, nem nada de parecido, era só um sítio com um letreiro, de luz aos tremeliques, dizendo: “Aqui vivemos os dois. Entre.”
Entrou.
Numa mesa a levitar, estavam, Deus com o bordão de peregrino no bolso, e o demo, tridente à cinta, a jogar xadrez. Nos intervalos de cada jogo, antes das peças realinhadas, Deus tentava moldar um pedaço de barro. O demo batia com o sílex nos chavelhos, a ver se deles tirava a faísca para atear o tridente. Palavras não as largava o silêncio.
De confusão se encheu. Voltou para trás. Em casa uma vez mais imaginou, com tenacidade. Findo o torvelinho do pensamento tornou ao sítio do letreiro, que já lá não estava. Caída no chão, apenas uma parra gatafunhada.
“Ele ganhou, mas batotou. Voltarei mais tarde. Quero a desforra. Assinado – demo.”
Ao dobrar da folha, numa das esquinas, estava aposto o carimbo: “Assinatura reconhecida por Deus.”
Ficou sem saber que destino dar aos seus pensares perturbados.
Muita vida depois, foi de novo ao letreiro. Encontrou-o, despido de dizeres, de luz apagada. Claridade, apenas a do tecto brumaceiro descido da Lua, chegando para os ver. Um sem o bordão de peregrino, outro despojado do tridente. O primeiro de testa enrugada e barbas longas, o segundo de chavelhos caídos. Ambos envelhecidos, mas continuando, em silêncio, de olhos pregados no xadrez.
(Este texto foi publicado em 11 de Janeiro de 2010. Peço aos meus amigos, visitantes e leitores que me desculpem a reedição.)