sexta-feira, 28 de maio de 2010

Do Mwata Milagre



No baú das memórias guardo o sabor exótico e único do tamarindo. Também lá está esta história que me contou o Mwata Milagre.


Sementes mágicas

A árvore, ali medrada, é o tamarindeiro que vive no quintal dela.
O tronco, largo na base, estica-se depois lá para cima, onde volta a inchar com uma corcova rugosa a dizer que muita idade já ela andou. Ninguém lhe conhece o tempo que leva de vida, mas há registo na tradição oral dos negros mais velhos, expulsos para as sanzalas à medida que a cidade crescia, que a árvore já ali estava quando construíram a vivenda, ajardinaram e vedaram o quintal, sem que mãos humanas a tivessem plantado. Da corcunda rasgam-se, encarquilhados ao princípio, esguios e lisos depois, os dois primeiros galhos. Um deles, atirado para fora dos terrenos da residência, a pousar numa sebe de buganvílias vermelhas. Ambos, e os restantes que crescem por cima deles, com os ramos pejados de milhares de pequenas folhas verdes, quase transparentes, onde tecelões e pardais fazem ninho, enchendo os entardeceres de trinados ao desafio e chilreios desafinados com grande restolho à mistura, e muitos tamarindos com que ela se delicia quando já estão mucefes, que o mesmo é dizer-se bem maduros.
As sementes das vagens, negras e brilhantes, guarda-as num frasquinho de cristal, oferta de Paulo, revestido por fina renda de prata assente numa base de corindo lapidado, emanando mil raios faiscantes quando a luz lhe toca, ou refractando-a nas cores do arco-íris. Só as mais adelgaçadas, com o formato de um pequeno coração, não em rigor, mas com a fantasia e imaginação que ela põe à solta sempre que olha para coisas de que gosta. Ainda que o não sejam, diga-se, os olhos dela vêem-nas assim. São raras. Recolheu apenas três, até agora.
A empregada em casa de Ingrid, uma luba do Kasai, meio amestiçada, ao que se supõe fruto de uma ligação de antepassados com pombeiros (como eram conhecidos os portugueses que se dedicavam ao tráfico de escravos, na terra da família dela), falou-lhe algumas vezes daquelas estranhas sementes de tamarindo.
Contou-lhe a luba, que se chama Lila: minha mãe me disse para guardar sementes como esta (mostrava-lhe uma que trazia pendurada ao pescoço por um cordão de couro de javali). Nos fazem mulher. Nos trazem um homem de viver sempre com ele e ter filhos. Tem que ser três, mesmo mais. As árvores delas tem poucas na minha terra. Apanhei só uma, quando era pequena, no terreno dos tios da minha mãe. Lá, tem um pau de tamarindo. A menina quando encontrar guarda bem. Minha mãe me disse, as sementes de tamarindo, quando uma virgem lhes apanha dá coração no homem que vai ser dela para toda a vida. Faz-lhe aparecer ele. Pode dar as sementes nele, também, assim ele não esquece. Eu, não vou ser mulher de homem da vida toda. É assim, tenho só uma semente de tamarindo!....
Ingrid ouviu a história, cada vez que a luba Lila a ela voltou, com um sorriso condescendente: No que ela acredita!
Mas a verdade é que, vá-se lá perceber isto, sempre que olha para as sementes aconchegadas no frasquinho de cristal, Ingrid vê Paulo sorrindo-lhe!

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Pedido de Namoro

("Namoro" - Almada Negreiros)

Descobre-a ao vencer uma quina da vida. Cruzam-se. Busca-lhe os olhos. Pisca-lhe um.
Ela sorri.
Destro e rápido, vindo por caminho a direito, o absoluto do amor ciranda à volta deles, enlaça-os, colhe-os, suga-os como o vórtice de uma lanterna mágica, sem que um e outro o saibam ainda, embora aqui tenham chegado com suspeitas de que tal lhes iria acontecer.
À noite, no quarto, debruça-se sobre a secretária de madeira escura, cujo aspecto deixa perceber ser mais metida na idade do que ele.
Arreda livros e papéis.
Retira da gaveta um lápis e um bloco de apontamentos.
Passa rápido o olhar de um extremo a outro do tecto, a rascunhar uma ideia. Trá-la, e à descoberta, para baixo.
Espreitando-se-lhe por cima do ombro, avista-se o que acaba de escrever.
- Vamos viver?
Parece-lhe bem.
Enrola o papel em canudo. Passa-lhe um elástico, resguardando-o de aberturas despropositadas. Guarda-o debaixo da almofada da cama, local oculto, inteiramente seu durante o sono.
Na manhã seguinte, extrai do encosto de dormir as duas palavras e o ponto de interrogação. Retira-lhes o atilho. Com eles segue para a quina onde se cruzaram. Ela surge, sorridente de novo. Dá-lhe o papel. Ela lê. O rosto ilumina-se-lhe com reflexos prateados. Vêm-se-lhe rubores, brilhos alegres a bailarem-lhe nos olhos. Guarda o papel sob o decote da blusa. Sabe-lhe bem, a um sentir nunca experimentado. A seda da face avermelha-se. De toda a parte de si, e de fora, chega-lhe um calor a enchê-la, a apoderar-se dela.
Responde-lhe com os lábios mais recortados do que é costume:

- Sim, vamos viver.

E dá-lhe uma flor em forma de coração.

(Como dizia o Poeta - Vinicius de Moraes)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Os meus selos

Hoje é dia de mimos. Tempo para postar mais alguns dos selos que recebi.

Oferecido pela Maria Teresa (Beijinhos embrulhados). Exemplo a seguir?! O selo traz quatro requisitos. Satisfaço-os.

1- Citar dois defeitos
- de nascença: sou teimoso. Adquirido: fumo.
2- Citar duas qualidades
- sou solidário e fraterno
3- Indicar uma música que seja ou esteja a ser a trilha sonora da minha vida
- a trilha sonora da minha vida tem sido o bater do meu coração, que não é de ferro.
4- Por fim uma frase que eu use como mantra
- se mantra quer aqui significar oração, qualquer que seja, não uso. Não oro.


Este chegou-me da Teresa (Os meus óculos do mundo) e da Helga (Planícies da memória). Às duas agradeço tamanha gentileza. Devo:

1. Enumerar 3 Sonhos
- amanhã não haverá crianças a chorar de fome e de medo;
- os pedófilos serão extintos;
- a Humanidade desaprenderá a palavra guerra;
2. Enumerar 3 pecados/tentações
Transgressões de preceitos religiosos não serão, certamente, porque não ando por aí. Tentações são-no, de facto!
- o cigarro, o pastel de nata e o vinho tinto.

3. Comentar no blogue criador do selo
- como certeza, apenas esta: comentarei nos blogs que mo ofereceram.

A ematejoca diz ser o meu um blog clássico! Obrigado, amiga de longe. Que tudo continue bem aí por Düsseldorf. Quer ela que eu diga qual é a minha flor preferida e refira uma mezinha caseira. Pois bem:
- rosa vermelha;
- xarope de cenoura. Faz bem a tudo, até à mania de que aquilo cura todas as maleitas!





sábado, 22 de maio de 2010

Flores murchando



Escrito a dois

(A Maria João e eu)

Foi no regresso de férias.

Noventa quilómetros antes de chegar a casa, mais metro menos centímetro, saímos da auto-estrada. Decidíramos passar pela cidade à beira Sado, que não víamos há muitos anos. Numa das esplanadas da avenida dando para o rio pedimos dois cafés e uma água fresca. Ali estávamos, descansando, quando na borda da esplanada apareceu um grupo de adolescentes, entre os 14 e os 16 anos, pareceu-nos, em caminhada ruidosa.
Surgiram vestidas de mini-saia, cintura caída e blusas de grande decote. Cabelos tombados pelos ombros, sobrancelhas engrossadas, lábios e olhos pintados, maçãs do rosto avermelhadas, garrafa de cerveja na mão, algumas de cigarro na boca, outras com ele em boquilhas. Bamboleavam-se, em jeitos insinuantes, como prostitutas da noite em qualquer beco esconso. Uma delas, mais velha, talvez na casa dos 30, fotografava o grupo e quem estava sentado na esplanada. E lá foram, roçando-se por um e por outro, provocantes. Estranho… aquele triste desfilar!
Numa mesa ao lado sentava-se um casal. Ouvimos a voz masculina: “é assim que elas começam!”. De outras chegaram-nos gargalhadas alarves. De que se ria aquela gente?!
De repente uma das minhas canadianas, encostada à cadeira, foi pelos ares. Um rapaz, aparentando a mesma idade das raparigas dera-lhe um pontapé. Sem nada dizer seguiu trôpego, também de garrafa de cerveja na mão, visivelmente etilizado, juntando-se à algazarra do grupo.
Que espécie de humanidade é esta?!
De novo a voz da mesa ao lado: “se fosse comigo dava-lhe umas bofetadas!”.
Claro que não dei. Para violência chegara-me o espectáculo a que assistira. Os risos, esses, continuaram…
Deixámos a mesa e fomos para a beira-rio, à barraquinha dos doces regionais e dos pinhões, as sementes de pinheiro manso em que a região é fértil. Para além da pergunta quanto custa, manifestámos à senhora vendedora das iguarias a nossa perplexidade (e não só!) pelo que viramos.
Não tem mal, são do teatro da escola, disse ela.
Do teatro da escola…?!
Regressámos pensando haver muitos jardins onde botões ficarão por florescer. Murcharão antes de tempo.
Depois de ter escrito este post encontrei no blog Pequenos Detalhes, da Maria João, amiga virtual desde a primeira hora, já lá vai mais de um ano, que um dia (quem sabe?!) conhecerei pessoalmente, um texto que me seduziu. Pensei: como eu gostaria de o ter escrito! Como este poema tem tanto a ver com o que senti! Pedi-lho emprestado para rematar, com chave de ouro, o meu post. Sensível, solidária e fraterna como é, ela autorizou-me a publicá-lo. Aqui o deixo, fazendo do meu post uma escrita a dois, uma partilha de sentimentos que muito me honra. Obrigado, Maria João.


De que te ris, humanidade?!

Sorves o brilho com que julgas cobrir-te
E despes-te da humildade, despudoradamente
Ousando violentar todas as tuas primaveras
Rezas, porque o coração não é feito de ouro e prata
E a dor é nó que não desata
O desespero a que te condenas
De que te ris, humanidade?!
Se na deserta alma que te habita
Chovem lágrimas apenas

(Maria João, Maio de 2010)





segunda-feira, 17 de maio de 2010

Regresso de férias (A Viagem)


Ao regressar muitos comentários aqui encontrei! Em todos, a simpatia e as palavras amigas de quem os enviou. Alguns trouxeram, também, a oferta de um selo, que irei editar em post. Sinto-me feliz ao ver-me rodeado por tanta amizade. Sou um bloguista sortudo! Obrigado a todos. Permitam, agora, que vos vá deixando algumas impressões.

A Viagem

Bagageira arrumada. Saídos da garagem deparou-se-nos um céu com os estores corridos. Pingava uma chuva miudinha, metediça e fria, soprada da borda da lezíria. Não permitimos que a desilusão nos embaciasse a vontade. Viéramos do sítio de onde estávamos, querendo partir e chegar ao destino que nos propuséramos, trezentos quilómetros a Sul. Imaginei, então, o que de momento não podia ver: mais adiante, por certo, o tempo estaria melhor. Puro engano! Ao chegarmos ao portão da auto-estrada chovia que Deus a dava!
Deus passa a vida a dar e a tirar, hoje não será excepção, disse para comigo, tentando convencer-me. Novo equívoco! Este era o dia do Seu descanso, tempo para os deuses suplentes se divertirem com os dois viajantes solitários. Não satisfeitos com a chuva, puseram-se a soprar ventos desencontrados! Olhar posto no horizonte alagado, libertou-se-me um gemido de resignação.
Tão harmoniosamente quanto possível, e habituado que está a alguns feitos, o carro foi rolando. Poucos quilómetros vencidos ao som do vaivém irritante dos limpa vidros, olhei para cima. Lá estavam elas, as nuvens, de mau humor, quais carrancas, desenhando rostos de mil e uma expressões severas. Algumas, provavelmente resultantes de acabamentos apressados, mais pareciam gravuras rupestres. Virando os olhos para o lado, na busca do mato em redor, nada se via, nem sequer uma carqueja ou uma giesta! Lá fomos prisioneiros daquele comboio de vapores suspensos, que parecia vir do Infinito e para ele voltar, conduzindo-nos por um rio de águas buliçosas, como a caminho de um buraco negro. Apeteceu-me dizer: hoje também eu vou andar sobre as águas!
Mais ou menos por alturas do meio do percurso, chegou-se-nos a vontade de amansar o ronronar do estômago. O espírito ainda se aguentara, mas a carne cedera! Na “Área de Serviços”, o mau como de costume – comeres desprovidos de sabor e caros! Ao chegar a uma “Área” destas, tenho sempre a sensação de me estar a encontrar com uma qualquer civilização perdida. Porque se não põe ordem naquilo?!
Bebida a bica, de novo rodas na estrada. As nuvens continuavam, cada uma engendrando outra, ligando-se numa imbricação sem fim. Uma vez mais o confronto com um acesso de fúria dos céus. Agora já não chovia que Deus a dava, mas mais. A água caía de cima, soprava dos lados, até do asfalto parecia nascer. Era tal que até os cães, se por ali andassem, a beberiam de pé!
Assim foi sendo até chegarmos ao destino. Aqui, uma surpresa: a avenida do hotel, bordejando o Atlântico, fora transformada em zona pedonal com calçada à portuguesa, resultante da Requalificação da Beira-mar, a que meteram ombros a autarquia, o ministério da Economia e o Fundo de Turismo. Dá gosto ver a obra que ali foi feita. Ponham-se lá mímicos, actores, músicos, floristas e a alegria catalã, e, de repente, passe o exagero, até nos poderemos imaginar nas Ramblas de Barcelona! Neste País (calai-vos profetas da desgraça!) ainda se trabalha, e bem! Para que melhor víssemos o belo que aquilo ficou a chuva cessou, não nos saciando, embora, a fome de céu azul. Não! Lá por cima permanecia tudo escurecido, só que as nuvens já não desenhavam rostos de expressões sorumbáticas. Estavam, agora, assemelhando-se a fantasmas fugidios, porventura recolhendo-se, sabe-se lá aonde, levando com eles os regadores.
Depois de instalados fomos à demanda do restaurante para o jantar. Encontramo-lo quase cheio, mas ainda com uma mesa para dois, em local aprazível. Encomenda feita reparámos que a sala estava cheia com gentes locais: irlandeses, escoceses, ingleses e canadianos. Recém-chegados da portuguesa e bela Região do Oeste, éramos os únicos estrangeiros!

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Curtas férias!

Até já!
Estou de partida, rumando a Sul. Não em qualquer nave espacial, ou em nau por águas tormentosas como as que naufragaram o destruidor de Tróia, mas no nosso automóvel sempre à espera que levemos a passear os seus cento e trinta cavalos.
Vamos lá para baixo, onde o Oceano é mais quente e o Sol menos envergonhado. A recuperar da última cirurgia (são 15 as feitas até agora), mesmo precisando ainda das canadianas para me locomover, irei dar um dedo de conversa com os deuses marinhos na esperança de saber novas da tragédia do Golfo do México, e outras, que eles quando estão bem dispostos muito me contam, e instar o guardador dos céus a mandar um calorzito afável avivar-me a cor da pele um pouco esmaecida, ultimamente.
Do meio das manhãs até pelas tardes fora, na espreguiçadeira da praia, os livros far-me-ão companhia. Repartir-me-ei entre a leitura, a ingestão de um qualquer ligeiro aconchego para o estômago, e o contemplar as pequenas e macias ondas embrulhando-se na areia fina. E, naturalmente, passar os olhos pelo que está em meu redor, à descoberta de um gesto ou de um som que me prendam a atenção, ou mesmo do pousar de um pardalinho à procura de almoço. Por vezes até um casal de corvos crocicantes se mostra por entre os arbustos agarrados ao que resta da falésia.
Uma tarde chegará em que farei das canadianas bastões e subirei (tentarei) à rocha do costume e nela me sentarei vendo os veleiros passarem, e aguardando o pôr-do-sol para observar o recolher do nosso lampião e aquecedor celeste. Provavelmente, soprará uma brisa fresca a trazer-me notícias de como será a manhã vindoura. Se o Sol ao partir se avermelhar, dizem os entendidos, o dia seguinte será quente, seco e claro.
À noite, após um banho retemperador e o que mais possa acontecer, procuraremos, como é hábito, um restaurante aonde chegue o sussurro do mar, o que a mais das vezes não passa de um sonho. Que importa? Sonhar é viver! A noite terá também direito a que por ela passeemos olhando a Lua, ou as estrelas, e nos encontremos com uma esplanada para nela tomarmos uma bebida como aconchego para o sono.
Não levarei o portátil, desculpem! O Conversas Daqui e Dali vai de férias, também, durante uns dias. Talvez um pouco mais de uma semana. Tempo que estaremos a ver como se porta o Algarve neste Maio que corre.
Deixo-vos com uma canção. Sei que já uma vez aqui a coloquei. Não resisto a editá-la de novo. A letra toca-me fundo, bem como a interpretação dessa extraordinária mulher que foi Mercedes Sosa – “La Negra”, cantando a inesquecível Violeta Parra. Espero que perdoem a repetição.
Um abraço a todos. Até já.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Porquê?


Naquela noite, nascida de um dia de alma cansada, olhos fixos no branco do tecto, tardava-se-lhe o sono.
Fechou os olhos.
Fê-los aparecer
.

Enfileirou-os a um canto da planura branca, e afanou-se a passá-los para o lado de lá, sem o lograr. Ao chegar mais ou menos a meio, por alturas de um inchaço no acrílico da pintura, iam os bichos para aí já depois de muitos, desalinhavam-se sempre umas ovelhas, seduzidas por verdura ali grelada, atirando-se à iguaria, e tresmalhando-se depois, obrigando-o a vir atrás recomeçar. Experimentou pô-los a par, macho e fêmea, e alinhá-los ao contrário.
Gastou as horas até que a manhã foi buscar a noite. Debalde.
Outro era o alimento que as bichas queriam. Uma insistência mais, não se tivesse o Sol metido para dentro da janela a sacudir-lhe os olhos e a deitar-se-lhe entre as pernas, e teria perdido a tramontana. Conclui-se, assim, com a ligeireza de um supor. Derribado, enfadou-se. Desistiu.
Mudou de afazeres.
De inadaptável a pastor com ajustes por descobrir, não tendo sequer perro com quem se apurar no ofício, e o termo não é aqui trazido, nem pouco mais ou menos, não haja espúrias leituras apressadas, como tendo alguma coisa a ver com a infâmia porque já se designaram os Mouros, mas apenas querendo dizer o que se quer, passou a observador do ondulado da cortina de cambraia, às voltas com um amor-perfeito estampado em relevo, a ver se descobria de onde colhera a flor tantas cores e o brilho aveludado. Então, uma voz vinda de mansinho de dentro de si, sem se fazer anunciar, perguntou-lhe o que andava ele por ali a fazer. Gosto de pensar, ora essa!
Apesar da resposta lhe ter surgido de imediato clara, não confundindo as palavras, estas, feitas em avaros, nada mais lhe disseram. Acudiu-lhe à ideia que a frase fora interrompida ao arrepio da sua vontade, por algo de indefinível a intrometer-se. Não fora ela abafada, bem o percebeu, remataria assim: vai bater a outra porta! E, se os tivesse, encolheria os ombros.
Haverá de continuar, sim haverá, escuta-se-lhe depois, à procura de um temor para espantar os receios que o visitam. Há-de descobrir porque está encruzilhado o mar dos seus sonhos. Juntar a recordação e o esquecimento. Continuar a dizer que a vida, ou o que quer que seja que se meta a fazer dela, não tem sempre que ser o que ela quer!
Por onde se entretém, afinal, a vida, que o deixa, assim, por ali e aqui?
E porque haverá de andar a correr atrás do tempo?

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Book- Blogagem colectiva

“A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”
(António Lobo Antunes)



A publicação deste post integra-se numa blogagem colectiva sugerida pela C. do Marcas D’Água, em comentário deixado no Bicho-Carpinteiro da Austeriana. Foi decidido fazê-lo hoje, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, implementado pela UNESCO. A celebração deste dia dá-nos oportunidade para reflectirmos sobre a necessidade de aquisição desse bem que é o Conhecimento.
Através do programa "Memória do Mundo", a UNESCO tem promovido a identificação e preservação de documentos e arquivos de grande valor histórico, assegurando a sua ampla disseminação. Entre eles contam-se, por exemplo, o original da 9ª sinfonia de Beethoven, a Bíblia de Guthenberg ou a Carta de Pêro Vaz de Caminha (o primeiro bem português inscrito no programa).
A comissão Europeia lançou em 27 de Abril o Livro Verde com o intuito de estabelecer prioridades para a Cultura, área já geradora de cinco milhões de postos de trabalho.
O vídeo revela-nos uma fantástica «descoberta» científica! Experimente este novo produto, o Book, vai ver que vale a pena.
Ainda pode participar na blogagem colectiva. É só dispor-se a tal.



domingo, 2 de maio de 2010

Dia da Mãe



A última vez que te vi estavas deitada, serena, dada ao sono de que não se desperta. Olhei-te. Invadiu-me uma raiva maior que a dor. Foi dela que eu nasci, disse para mim, em silêncio, agarrado à solidão que se me chegou. Não chorei. Tocaram-me no ombro. Vi taparem-te. Fizeram-me um sinal.
Acompanhei a tua viagem até ao local em que te desceram e te cobriram com uma terra diferente da que te vira nascer. Segurei as lágrimas que teimavam em soltar-se. Aquela mágoa não a quis partilhar. Era só minha! Sofri-a na alma e no meu coração que sangrou.

No suco dos meus olhos vi, então, partes da nossa vida. A tua foi longa, chegaste perto dos 100. Lembrei-me que tempos antes te fôramos visitar, já tu vivias num mundo longe do nosso. Oferecemos-te uma caixa de bombons. Deliciaste-te, eu vi, mas as palavras que então disseste já nada tinham a ver connosco. Estavas noutro local, provavelmente num paraíso para que te transportaras, onde contigo vivias, e nós não habitávamos.
Recordei-me, também, do muito que me ensinaste. Um dia, era eu ainda um catraio que jogava descalço com bola de trapos, fui fazer-te queixa de uma “malandrice” que o meu irmão me fizera – zangado, rasgara-me a camisa. Soubeste da atitude dele, vi nos teus olhos que não gostaste, e logo pensei agora é que ele vai ver! Atiraste-lhe umas palavras, de que já não me lembro, e ele voltou para o quintal. A mim deste-me um ralhete, apontaste-me o dedo e disseste: não se denuncia um irmão!
Aprendi para todo o sempre! Como para sempre em mim ficaram os carinhos das tuas mãos fagueiras, nos tempos em que caminhava pela minha meninice.
No momento em que a última pá de terra sobre ti caiu, subiu um eco trazendo-me à memória silêncios. Silêncios meus, hoje cheios de palavras que gostaria de te ter dito.
Não sei por onde andas agora. Pouco importa. Mas se te voltar a encontrar, dir-te-ei: Mãe, gosto muito de ti.
Beijo a tua memória.

sábado, 1 de maio de 2010

Revisitar a História (O 1º de Maio)




O 1º de Maio





A 20 de Junho de 1889, a Segunda Internacional Socialista, reunida em Paris, decidiu convocar anualmente os trabalhadores para uma manifestação pela conquista das 8 horas de trabalho diário. Em homenagem aos trabalhadores “ Mártires de Chicago” (a cidade que era o principal centro industrial dos Estados Unidos naquela época), o dia escolhido foi o Primeiro de Maio. Em 23 de Abril de 1919, o Senado francês aprovou a jornada diária de 8 horas e proclamou feriado o dia 1 de Maio desse ano. No ano seguinte a Rússia adoptou o Primeiro de Maio como feriado nacional, exemplo que foi seguido por muitos outros países. Instituíra-se o Dia Mundial do Trabalho.

Como se chegou aqui:

Há que retroceder aos primórdios da Produção Capitalista, quando ainda eram comuns práticas selvagens. Não apenas se procurava, desenfreadamente, a mais-valia, através de baixos salários, como até mesmo a saúde física e mental dos trabalhadores era comprometida por jornadas que se estendiam até 17 horas de trabalho diário, prática comum nas indústrias da Europa e dos Estados Unidos no final do século XVIII e durante o século XIX. Férias, descanso semanal, cuidados de saúde, apoio à maternidade e reformas não existiam. Para se protegerem, os trabalhadores criaram vários tipos de organização como as caixas de auxílio mútuo, precursoras dos primeiros sindicatos.Com as primeiras organizações, surgiram também as campanhas e mobilizações reivindicando maiores salários e redução das horas de trabalho diário. Greves, nem sempre pacíficas, explodiam por todo o mundo industrializado. Chicago, um dos principais pólos industriais norte-americanos, era, também, um dos grandes centros sindicais. Duas centrais lideravam os trabalhadores em todo o país: a AFL (Federação Americana de Trabalho) e a Knights of Labor (Cavaleiros do Trabalho). As organizações (centrais), sindicatos e associações, que surgiam, eram formadas principalmente por trabalhadores de tendência socialista, anarquista e social-democrata. Em 1886, Chicago foi palco de uma intensa greve operária. Os trabalhadores reivindicavam melhores salários e a passagem da jornada de trabalho de treze para oito horas diárias. À época, Chicago não era apenas o centro da máfia e do crime organizado, era, também, o centro do anarquismo na América do Norte, com importantes jornais operários como o Arbeiter Zeitung e o Verboten, dirigidos respectivamente por August Spies e Michel Schwab.As entidades patronais controlavam igualmente jornais, onde os líderes operários eram descritos como “preguiçosos e canalhas” que só procuravam a desordem. O Chicago Tribune foi mais longe e publicou em editorial: "Para estes vagabundos esfarrapados, a melhor comida é uma carga de chumbo no estômago". No decorrer da greve, uma passeata pacífica, pela Avenida Michigan, de trabalhadores no activo, desempregados e familiares, vestindo roupas de Domingo, e empunhando cartazes onde se lia "8 horas para trabalhar, 8 horas para descansar e 8 horas para fazermos o que for de nossa vontade", silenciou momentaneamente tais críticas, embora com resultados trágicos no curto prazo. Do alto dos edifícios e nas esquinas a polícia vigiava, fortemente armada. A passeata terminou com um comício.No dia 3, a greve continuava em muitos estabelecimentos. Diante da fábrica McCormick Harvester, a policia disparou contra piquetes de greve e outros operários, matando seis, deixando 50 feridos e deteve centenas. August Spies convocou os trabalhadores para uma concentração na tarde do dia 4. O ambiente era de revolta apesar dos líderes pedirem calma. Os oradores revezavam-se; Spies, Parsons e Sam Filiem, pediram a união e a continuidade do movimento. No final da manifestação um grupo de 180 policiais atacou os manifestantes, espancando-os. Uma bomba explodiu no meio dos guardas. Sessenta foram feridos e vários morreram. Chegaram reforços policiais que começaram a atirar em todas as direcções. Morreram centenas de pessoas: mulheres, homens e crianças.Os acontecimentos ficaram conhecidos como A Revolta de Haymarket. A repressão foi aumentando num crescendo sem fim: o Governo decretou o “Estado de Sítio”, e o recolher obrigatório, com a consequente proibição de circulação pelas ruas. Milhares de trabalhadores foram presos, muitas sedes de sindicatos incendiadas, criminosos e gangsters, pagos pelos patrões, invadiram casas de trabalhadores, espancando-os e destruindo-lhes bens. A justiça levou a julgamento os líderes do movimento, August Spies, Sam Fieldem, Oscar Neeb, Adolph Fischer, Michel Shwab, Louis Lingg e Georg Engel. O julgamento começou a 21 de Junho de 1886 e desenrolou-se rapidamente. Provas e testemunhas foram inventadas.
A sentença foi lida a 9 de Outubro. Parsons, Engel, Fischer, Lingg, Spies foram condenados à morte por enforcamento; Fieldem e Schwab, à prisão perpétua e Neeb a quinze anos de prisão.
Linng, ao centro na foto, não foi enforcado por ter sido encontrado morto na sua cela.

Gerou-se, então, um movimento de solidariedade internacional pressionando o governo dos Estados Unidos a realizar um novo julgamento, o que acabou por acontecer em 1888. O novo júri, entretanto constituído, reconheceu a inocência dos trabalhadores, admitiu, como provado, que fora um capitão da polícia a mandar rebentar a bomba em Haymarket, culpabilizou o Estado norte-americano e decidiu a libertação dos trabalhadores presos, incluindo os condenados a prisão perpétua.

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Em Portugal só a partir da Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, é que se voltou a comemorar o Primeiro de Maio, livremente, e este passou a ser feriado nacional. Hoje, as duas centrais sindicais, CGTP (Central Geral dos Trabalhadores Portugueses) e UGT (União Geral de Trabalhadores), assinalam-no, em liberdade, com manifestações e comícios por todo o país. Durante a ditadura salazarista do Estado Novo as comemorações eram reprimidas pela polícia.
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Os Estados Unidos, onde tudo começou, não reconhecem, apesar disso, ainda hoje, o Primeiro de Maio como Dia do Trabalhador. Naquele país também se celebra um Dia do Trabalhador (Labor Day), mas isso acontece na primeira segunda-feira de Setembro. É feriado federal (nacional), estando relacionado com o período das colheitas e com o fim do Verão. A decisão de assim ser foi tomada pelo presidente Stephen Grover Cleveland (Partido Democrata), por recear que a celebração em Maio reforçasse o movimento socialista nos Estados Unidos.

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Viajar pela História deixa-nos uma certeza: lutando por melhor, é sempre possível mudar.
Nunca desistir é lema que sigo desde sempre.
Recordo, com emoção, o 1º de Maio de 1974 em Lisboa. Nunca vira manifestação como aquela. Vivi-a com o sentimento de ter recuperado esse bem precioso que é a Liberdade. Chorei enquanto desfilava e ouvia os líderes políticos regressados do exílio. Hoje, não fora a ainda impossibilidade de caminhar como quero, voltaria à Manifestação.
Deixo-vos com palavras de Manuel Alegre:

É possível falar sem um nó na garganta é possível amar sem que venham proibir é possível correr sem que seja a fugir. Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta. É possível andar sem olhar para o chão é possível viver sem que seja de rastos. Os teus olhos nasceram para olhar os astros. Se te apetece dizer não grita comigo: não. É possível viver de outro modo. É possível transformares em arma a tua mão. É possível o amor é possível o pão. É possível viver de pé! Não te deixes murchar. Não deixes que te domem. É possível viver sem fingir que se vive. É possível ser homem. É possível ser livre.
( Infelizmente parece estarmos a regressar aos primórdios da Produção Capitalista. Na cena política portuguesa ressurgem os vendedores de ilusões, que nos pretendem acorrentar de novo)