segunda-feira, 12 de março de 2012

Os Kalús e o Milagre


De quando eu era um Kalú reguila

 Éramos seis putos, andando pelos sete e os oito anos, companheiros na Escola 8 de Luanda.
Sempre que apanhávamos um intervalo maior, uma «borla» por falta de professor, a escola encerrada por força de uma daquelas chuvadas fortes, que caíam sem aviso prévio desventrando a terra, ou ainda porque nos apetecia gazetear, lá voltávamos costas às aulas, correndo para a Lagoa do Kynaxixe, na altura o limite da cidade. Depois dela, era o mato. Para lá íamos em algazarra ululante de miúdos kalús.
Com as sandálias, de pano e sola de pneu velho, ensacadas nas mochilas, seguíamos descalços tocando de mansinho a terra com as palmilhas dos pés, todas brancas. Até mesmo as dos negros e mulatos o eram, o que então muita confusão me fazia porque cor igual em todos também, só nas palmas das mãos e no sangue que via, assustado, quando algum de nós se arranhava numa das piteiras que estendiam os braços de picos eriçados por entre o capim. Aquilo deixou de me afectar, quando um dia aprendi que nos reproduzíamos todos pela mesma cor – a vermelha do sangue –, e nos amávamos e matávamos igualmente com a mesma – a branca da palma das mãos.
Da Escola 8 à Lagoa eram para aí novecentos metros, mil, contas ajeitadas, sempre a correr pelo capim, galgando um ou outro arbusto. Fazíamo-lo não se nos ouvindo um único resfolgo. O cansaço só mais tarde nos colhia. De súbito, estávamos ali, junto da água barrenta, alguma da chuva, outra, talvez a maior parte, vinha de baixo, das veias da terra, ou fosse lá de onde fosse, trespassando pedras e areia fina.

No Cacimbo, aquela água chegava a ser transparente e conseguíamos ver um ou outro bagre pequeno, esse estranho peixe que consegue sobreviver na lama, indo buscar oxigénio a reservas que ele próprio constrói dentro de si, por alquimias secretas. No Calor, como era o tempo em que ali estávamos, ela ficava turva, do tom da terra vermelha da zona, e, também, mais alta. A Lagoa enchia, prenhe das chuvas grandes do nosso fascínio.

Sempre que aquelas águas caíam e andávamos por ali à solta, os calções e as camisas juntavam-se às sandálias nas sacolas escolares. Todos nus corríamos de um lado para o outro, caras viradas para cima. Bocas abertas, bebíamos o céu deixando a água fresca tanger-nos as gargantas e voltar a sair, correndo-nos pelo peito, excitando-nos o coração de meninos mais valentes do que os heróis das histórias do Mosquito.
Éramos capitães de um só medo: pisar a água da Lagoa sem antes ouvirmos o Velho. Só ele sabia se a surucucu andava por ali naquele dia, ou não.

E, outras coisas!
O Velho, – o Mwata de nome Milagre –, homem de servir em casa dos meus pais, no Largo da Tendinha. Também ele se evadia para a Lagoa, sempre que podia, para falas com os «mininos da Escola». Magro e seco como um abacateiro, igual aos que nas roças crescem esguios até ao Sol, lá abrindo a copa maior que um capacete colonial parecido com o que o meu avô usava, protegendo com a sua sombra os cafeeiros de muitos braços carregados de ouro negro, que faziam a riqueza de uns quantos e, aprofundavam a escravidão e miséria de muitos outros. O Milagre era alto como as mangueiras da Funda, e velho como um embondeiro. Tal como este, já nem sabendo a idade ou mesmo se menos velho alguma vez tinha sido. O meu Mwata nascera já assim, por certo: com idade crescida, e sábio.
Com o Milagre, ficávamos até o Sol avisar serem horas do regresso a casa. As suas mãos secas de dedos finos e compridos como os dos artistas, esculpiam no ar histórias de encantamentos, que escutávamos seduzidos. De quando em quando interrompia-se, quedando-se em silêncio a fumar um cigarro enrolado com a parte acesa virada para dentro da boca, como fazia a lavadeira da minha casa enquanto esfregava a roupa com o filho dormitando agarrado às costas por um pano envolvendo-lhe o peito.
Às vezes, o Milagre alçava os braços.
Não entendia porque o fazia.
Pareciam-me impulsos do coração do Velho, em busca de mistérios perdidos ou de acontecimentos para anunciar, lá por cima, nas terras dos deuses. Olhava-o, a ver se sim, mas permanecia inescrutável. – Não resisti. Um dia, perguntei-lhe:
- Porque te chamas Milagre?
Virou-se para mim. Ameigou-me o queixo e o cabelo com as mãos. Levantou-me suavemente a cabeça. Deixou repousar os seus olhos nos meus, e respondeu:
- Porque Deus me fez, e a minha mãe me disse assim!

10 comentários:

São disse...

Que bonito, meu amigo.

Sabe ? A sua narrativa trouxe-me memórias das águas turvas e quentes ´de Fortaleza(Brasil), já que de àfrica nada conheço, infelizmente.

Desejo.lhe uma óptima semana.

rosa-branca disse...

Amigo,Carlos, DE África NADA CONHEÇO MAS DEVE SER MARAVILHOSA, POIS COM TODOS OS QUE FALO QUE LÁ ESTIVERAM CANTAM-ME AS SAUDADES COM OS OLHOS MAREJADOS PELAS TEIMOSAS LÁGRIMAS. LINDA A SUA HISTÓRIA, BELO O SEU SENTIR E GRANDE, TÃO GRANDE DEVE SER ESSA SAUDADE. MILAGRES...HÁ-OS E QUE POR VEZES O QUE TÊM É UM ENORME CORAÇÃO E UMA ALMA SEM TAMANHO, DE TÃO GRANDE QUE É. ADOREI. BEIJOS COM CARINHO

Filoxera disse...

Parece que estou a ver e ouvir a alegria deste grupo de crianças de que fazia parte. E o diálogo com o Milagre.
A sua escrita é tão apaixonante quanto o misticismo com que descreve a realidade.
Adorei o conto!
Beijinhos.

Laços e Rendas de Nós disse...

Estive lá. No barulho seco e suave do capim apressadamente pisado;na limpidez da água da Lagoa, nas pérolas que reluziam no ar na agitação dos "capitães de um só medo".

Estive lá e ouvi o falar pausado dos anos de Milagre; admirei-e, mais uma vez com o que sempre me fascinou - o cigarro aceso "virado para dentro da boca";

Estive lá e senti aquele ritmo da lavadeira e vi a cara consolada do filho absorvendo o calor daquele corpo de Mãe;

Estive lá percebendo a simplicidade/aceitação da vida " - Porque Deus me fez, e a minha mãe me disse assim!",

Estive lá como tu "quando um dia aprendi que nos reproduzíamos todos pela mesma cor – a vermelha do sangue –, e nos amávamos e matávamos igualmente com a mesma – a branca da palma das mãos."

Estou aqui agradecendo poder ler este texto, que connosco partilhaste, e que tanto diz de ti e de outros que, como tu, cresceram naquela imensa Natureza.

Com todo o carinho, um beijo

Laura

folha seca disse...

Carlos
Carlos mais um pouco da sua vida contada duma forma contagiante. Já a tinha lido, ontem. Exitei em comentar. Há coisas tão perfeitas (neste caso a descrição) que ao tocar-lhe tenho receio de estragar.
Um grande abraço.
Rodrigo

Brown Eyes disse...

Sola de pneu velho! Já não me lembrava dessas sandálias. Carlos maravilhoso. Beijinhos

Rogério G.V. Pereira disse...

"um dia aprendi que nos reproduzíamos todos pela mesma cor – a vermelha do sangue –, e nos amávamos e matávamos igualmente com a mesma – a branca da palma das mãos."

Nunca se chega tarde quando se chega a tempo de ler o que escreveu...

Abraço amigo e ao velho Milagre

Teresa Diniz disse...

Carlos
Obrigada pela forma como partilhas as tuas recordações de uma terra que para mim é exótica e às vezes estranha. Mas as palavras e os sentimentos não o são.
Beijinho.

Mª João C.Martins disse...

Encantada, "escuto" eu, também, as suas histórias. E chego lá, ao lugar onde a terra tem, por instinto meu, a cor avermelhada que se aproxima do meu sangue.
Do Milagre, sabia eu já porque se chamava assim. Li aqui um dia, e nunca mais me esqueci disso.

Um beijinho enorme, Carlos. Obrigada pelo enorme prazer que me dá, quando o leio.

Fê blue bird disse...

Meu amigo tenho notado a sua ausência, espero e desejo que esteja bem.


beijinhos