domingo, 26 de abril de 2009

Memórias da minha terra (O Amigo 17)



A 17 quilómetros de Luanda, no sentido Sul, estrada para Benguela, está Benfica e o seu Mercado do Artesanato, também conhecido pelo 17.
Para além dos trabalhos de artesãos, em madeira, verga, vimes, tecidos, conchas, marfim, ossos e metais, e de criações plásticas, a óleo, ou aguarela, em telas e sobre areia colada em pano, ali se vendem papagaios, periquitos e outras aves exóticas, macacos, cágados, tartarugas, pombos verdes, passarinhos e mais bichezas – por vezes até sengues, um sáurio grande aparentado dos jacarés – e, também, peles de onça, leão, crocodilo, lagartos, jibóias e outros répteis.
Vendem-se coisas de quimbandas e de outros curandeiros, benzedeiros e exorcistas, como pós de cheirar, ervas de fumar e fluidos de esfregar. Os «papás» – tratadores de enfermidades e debeladores de azares – trocam, por dinheiro, amuletos espanta-espíritos-maus, invocações de curar males e atavios das almas, como fotografias do Papa João Paulo II, que peregrinou por Angola em Junho de 1992, provavelmente agora também já se comercializam as do actual chefe dos católicos Bento XVI, tudo embrulhado em grandes sorrisos e mãos cheias de bons conselhos. Com paciência e um pouco de diplomacia de ocasião (uma cerveja ou um maço de cigarros, e, ainda melhor, uma nota de dólar) conseguia-se (consegue-se?) que um ou outro dos curandeiros falasse dos seus processos de tratamento das mais diversas maleitas: uns, puramente mágicos; outros, com recurso a preparações estranhas de diferentes ingredientes; outros ainda invocando vontades divinas.
Os mercadores eram (serão ainda?) angolanos e zairenses, estes em maior número e dominando, sobretudo, as bancas dos marfins e ossos a imitá-los, (sendo necessário muito conhecimento para se fugir ao engano) e das malaquites e outros ornamentos metálicos. Têm, ainda, liamba e peças antigas de arte Kioka e Bakonga – máscaras e cachimbos –, verdadeiras relíquias, roubadas de museus no Norte de Angola. Como os seus camaradas da antiga Constantinopla, a que hoje se chama Istambul, nada vendem sem discussão de preço, começando, sempre, por um «oferece amigo». O vocábulo da afeição aprenderam-no com os angolanos, que a ele se ligaram pelos 16 anos de convívio com os cubanos, os seus autores.
Angolanos (poucos), e estrangeiros (muitos), em especial portugueses, a trabalharem nas estruturas militares e civis das Nações Unidas, ONGs (Organizações Não Governamentais) e em programas de cooperação, eram os seus frequentadores, dele fazendo destino obrigatório, aos fins-de-semana, em particular aos domingos, que os preços eram mais baixos ao fechar da feira. A maior parte, para lá rumava, na busca de uma recordação, ou de qualquer coisa para oferecer, no regresso à terra. Outros, por ali apareciam para rever conhecidos, saber novidades, trocar informações, reacertar memórias, recuperar afectos perdidos, conquistar amores novos..., que as kafekas abundavam!
O mercado era o «17». Dele se falava assim: vamos ao 17. Em tom intimista, como se de um amigo se tratasse. E tratava, pouco importando o lixo, o calor estorricante, as cubatas fedorentas envolvendo-o, ou os bandos de putos, esfomeados e esfarrapados, alapando-se aos carros. Nada nos aquietando, outrossim, o regresso a Luanda, ao pôr-do-sol, com passagem pelo Musseque Rocha Pinto, durante muito tempo uma zona de alto risco, onde eram frequentes os assaltos com armas de fogo, a viaturas por lá circulando. Com o «17», era acasalamento à primeira vista.

2 comentários:

Filoxera disse...

Viajei neste retrato do "17". Fabuloso!

Sandra Coelho disse...

Agora estou ainda mais curiosa! Ainda ninguém me tinha descrito o mercado desta maneira.