As Barrocas do Bungo
E
O Mar da Boavista
E
O Mar da Boavista
Éramos seis catraios desenfreados e reguilas, alunos do sábio e paciente professor Cardoso na Escola 8 em Luanda, onde frequentávamos o último ano da primária. Quatro negros, dois brancos.
Não éramos estudantes muito aplicados, mas também com aquele mestre bastava ouvi-lo atentamente e seguir o que ele escrevia e desenhava no quadro negro (o que fazíamos) que o saber ficava-nos para sempre. Diziam os mais velhos que éramos “os putos que sabiam”. Não seria tanto assim, mas a verdade é que passáramos sempre de classe com excelente aproveitamento e abraços do Prof.! Que agradável era sentir aquele peito de homem bom encostado ao nosso! Também havia tabefes, reguadas (algumas) e castigos, claro, mas aquilo era como o bater de mãe: não doía.
A escola não era o nosso limite. Éramos aventureiros, putos atiradiços, de sangue na guelra, sem medo. Queríamos descobrir o centro do mundo! Existiria ele? E a aventura não estava só na sala de aula (apenas havia uma), onde, pensávamos, já tudo tínhamos descoberto (para nós escrita e contas eram um tu cá tu lá, até sabíamos onde pôr a cedilha e o h do verbo haver, para já não falar da tabuada que dizíamos enquanto o diabo esfregava um olho), mas fora dela.
Viesse uma borla, ou decidíssemos uma gazeta (sim, também o fazíamos! Devemos ter sido nós a inventar a greve…) e pronto! Lá íamos os seis atravessar a rua a correr, guinar para cima em direcção ao Miramar e, aqui chegados, flectir para as Barrocas do Bungo, à procura dos sulcos de terra vermelha (as nossas picadas), que desciam para o Mar da Boavista, lá muito em baixo. Só nos metíamos nestas andanças quando a luz que vinha do céu chegava despida de nuvens, deixando ver aquele azul sem igual. Chuva nas Barrocas era um Deus me livre, nem nós, corajosos e intrépidos, nos atrevíamos!
Lá íamos, descendo o monte, numa correria trôpega e ziguezagueante, saquetas da escola penduradas ao pescoço e sandálias nas mãos. Chegávamos lá abaixo cansados, mas ainda com forças para o encontro com o mar. Entrávamos pisando a borda baixinha do Atlântico, que, embora por vezes envergonhado, parecia estar à nossa espera. Envergonhado, sim, porque havia dias em que nos acolhia com as águas barrentas tingidas pela lama vermelha arrastada das Barrocas por chuva violenta da véspera. E disso, estou certo, ele não gostava. Preferia banhar-nos com águas cristalinas. O Oceano gostava dos putos da Escola 8!
Foi ali, esbracejando por espumas brancas e lamas, que me lancei na aventura do mergulho no mar. Conheci-lhe a carícia. Aprendi a não lhe contrariar a força e a vê-lo por dentro. Tomei-lhe para sempre o gosto salgado como os das primeiras lágrimas que chorei. Demos e damo-nos bem.
Foi ali, à beira do Mar da Boavista que conheci os pescadores, gente boa como pouca tenho encontrado, que dormiam com os dongos à porta das cubatas.
Para além do prazer do convívio, conversávamos, sem pressas, sentados na areia, em círculo, como, mais tarde, numa qualquer libata da Ilha da Kyanda, à luz das estrelas. Ensinaram-me eles a arte de ximbicar as canoas: movê-las, não com remos, mas com bordões que fincávamos no fundo do mar, impulsionando-as, o que exigia habilidade e perícia. Muitas vezes me aconteceu não subir o bordão a tempo, continuando a canoa a deslizar. Ficava, então, agarrado ao pau, pendurado, aos pinotes no ar, como um kamundongo preso pela cauda. Depois, está bom de ver, era a queda na água, o esbracejar e o vir à superfície com alguns pirolitos pelo meio e ranhoca a correr-me pelo nariz. Os pescadores riam e diziam: “munanga não lhe dás no jeito”. Mas, como mestres aplicados, insistiam. E eu aprendi! Em troca ensinei-lhes as letras que habitam as palavras e a forma de as ler. Construímos Amizade Grande.
A chegada a casa, sempre tardia, que o caminho demorava, era outra aventura: ralha, tareia da mãe e banho forçado com sabão Life Boy, pois então, que de nada me valiam as aldrabices esfarrapadas!
A escola não era o nosso limite. Éramos aventureiros, putos atiradiços, de sangue na guelra, sem medo. Queríamos descobrir o centro do mundo! Existiria ele? E a aventura não estava só na sala de aula (apenas havia uma), onde, pensávamos, já tudo tínhamos descoberto (para nós escrita e contas eram um tu cá tu lá, até sabíamos onde pôr a cedilha e o h do verbo haver, para já não falar da tabuada que dizíamos enquanto o diabo esfregava um olho), mas fora dela.
Viesse uma borla, ou decidíssemos uma gazeta (sim, também o fazíamos! Devemos ter sido nós a inventar a greve…) e pronto! Lá íamos os seis atravessar a rua a correr, guinar para cima em direcção ao Miramar e, aqui chegados, flectir para as Barrocas do Bungo, à procura dos sulcos de terra vermelha (as nossas picadas), que desciam para o Mar da Boavista, lá muito em baixo. Só nos metíamos nestas andanças quando a luz que vinha do céu chegava despida de nuvens, deixando ver aquele azul sem igual. Chuva nas Barrocas era um Deus me livre, nem nós, corajosos e intrépidos, nos atrevíamos!
Lá íamos, descendo o monte, numa correria trôpega e ziguezagueante, saquetas da escola penduradas ao pescoço e sandálias nas mãos. Chegávamos lá abaixo cansados, mas ainda com forças para o encontro com o mar. Entrávamos pisando a borda baixinha do Atlântico, que, embora por vezes envergonhado, parecia estar à nossa espera. Envergonhado, sim, porque havia dias em que nos acolhia com as águas barrentas tingidas pela lama vermelha arrastada das Barrocas por chuva violenta da véspera. E disso, estou certo, ele não gostava. Preferia banhar-nos com águas cristalinas. O Oceano gostava dos putos da Escola 8!
Foi ali, esbracejando por espumas brancas e lamas, que me lancei na aventura do mergulho no mar. Conheci-lhe a carícia. Aprendi a não lhe contrariar a força e a vê-lo por dentro. Tomei-lhe para sempre o gosto salgado como os das primeiras lágrimas que chorei. Demos e damo-nos bem.
Foi ali, à beira do Mar da Boavista que conheci os pescadores, gente boa como pouca tenho encontrado, que dormiam com os dongos à porta das cubatas.
Para além do prazer do convívio, conversávamos, sem pressas, sentados na areia, em círculo, como, mais tarde, numa qualquer libata da Ilha da Kyanda, à luz das estrelas. Ensinaram-me eles a arte de ximbicar as canoas: movê-las, não com remos, mas com bordões que fincávamos no fundo do mar, impulsionando-as, o que exigia habilidade e perícia. Muitas vezes me aconteceu não subir o bordão a tempo, continuando a canoa a deslizar. Ficava, então, agarrado ao pau, pendurado, aos pinotes no ar, como um kamundongo preso pela cauda. Depois, está bom de ver, era a queda na água, o esbracejar e o vir à superfície com alguns pirolitos pelo meio e ranhoca a correr-me pelo nariz. Os pescadores riam e diziam: “munanga não lhe dás no jeito”. Mas, como mestres aplicados, insistiam. E eu aprendi! Em troca ensinei-lhes as letras que habitam as palavras e a forma de as ler. Construímos Amizade Grande.
A chegada a casa, sempre tardia, que o caminho demorava, era outra aventura: ralha, tareia da mãe e banho forçado com sabão Life Boy, pois então, que de nada me valiam as aldrabices esfarrapadas!
11 comentários:
As melhores coisas de nossas vidas são as lembranças não é?
Adorei seu texto.
bj
...o melhor de tudo isso
é saber que a mãe estava
sempre a esperar.
delícia de tempo, my God!
bj
Excelente escrita, não parecia um blogue, parecia um livro.
Vou voltar.
Mais um belíssimo retrato de Luanda, Carlos
Nossa... Carlos! Adorei...
Me senti como se estivesse estado lá, o tempo todo que você narrou. Eu sinto saudade, da saudade dos outros.
Um grande abraço, amigo. Durma bem.
Meu amigo
Como são doces as recordações de infancia, fez-me voltar no tempo.
Beijinhos
Sonhadora
Muito bonito este texto cheio de memórias.
Luanda continua a nos encantar através de suas doces lembranças, Carlos... Tão Linda a sua Luanda!
Beijos e bom dia.
Belas e ternas lembranças de crianças que todos fomos, umas mais felizes do que outras...
No seu caso todas bem felizes!
Angola deve ser linda, nunca lá fui, embora tivesse tido alguém muito íntimo, a "combater" nela...
Abracinho
olá Carlos,estou novamente passando por aqui e amei o seu post,são recordações muito importantes e lindas do seu passado.Sinto que você é do Bem.Forte abraço.Zen.
De S.Paulo de Luanda me trouxeram para cá...e quantas saudades minha nossa.
Filomena
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