O avô, por parte da mãe, o outro nunca o conheceu, era um artífice da vida. Reformado da Companhia das Águas, criava canários e jardins encantados. Num mar de gaiolas, na varanda traseira, moravam os cantores, alimentados também com gema de ovo cozida e pingos de Vinho do Porto, para que, dizia ele, a cantoria fosse mais sonora e afinada. Nos jardins da frente cresciam cravos, rosas, dálias, amores-perfeitos, e outras flores de cores invulgares, matizadas, que ele apurava com enxertias delicadas.
Lembra-se de o avô o levar a passear por entre as plantas cujas corolas, sorridentes, pareciam ter vida, quase falavam! Por vezes, quando o passeio acontecia já à noitinha, julgava ver estrelas a bailarem sobre as flores. Ele era menino, mas sabia, de um saber só dele, que aquilo era magia saída das mãos incansáveis do avô. Nunca lhe viu cansaço, o mais certo, pensava ele, é que o avô vivia o cansaço a sós. Assim, aprendeu a fúria de sonhar.
O reformado era um homem feliz, pai de muitos filhos, avô de inúmeros netos. Quando lhe falava ficava pregado às suas palavras. Escutava-as com avidez. Foi dele que um dia ouviu:
- O mais importante da vida é a felicidade, temos é que ser dignos, e não a deixar avariar!
Na quadra natalícia o avô mudava de afazeres. A consoada era em sua casa. No quintal das traseiras, sob um tamarindeiro lá residente, que enfeitava e iluminava, pondo-o a fazer de Árvore de Natal, não se esquecendo da Estrela nem do Presépio, mandava montar a mesa, acrescentada com umas tábuas sobre barris, para que toda a família coubesse. Não o largava. Acompanhava-o nas suas andanças da mesa para a cozinha, e desta para aquela.
O avô espreitava as travessas das rabanadas e das filhoses, os pratos da aletria, do leite-creme, e as terrinas das sopas de cavalo cansado. Perguntava se já tinham chegado a batata-doce, a mandioca, as mangas e os abacaxis, e se também havia cajus. Destapava a panela onde fervia o bacalhau, provando a água com o dedo, a ver se o peixe fora bem demolhado. Chamava a atenção para que as couves e os ovos não cozessem demais. Depois, enquanto outras mãos recheavam a mesa, deixava junto aos pratos dos netos, como era de seu costume, rebuçados e chocolates. Ainda dizia para a avó, não esqueças que o que hoje não for comido ficará para a roupa velha de amanhã.
Em celhas encostadas ao tamarindeiro mandava colocar as bebidas, refrescos para os gaiatos, outras para os adultos, tudo coberto com pedras de gelo. Sentada a família, era o último a tomar lugar, à cabeceira.
Iam consoando. Um pouco antes da meia-noite notava que a cadeira do avô ficava vazia. Lá foi ele outra vez, pensava. Então, alguém gritava chegou o Pai Natal! Traquina, desalinhada e aos gritos, como o avô a gostava de ver, a meninada saltava das cadeiras.
De trás do tamarindeiro, que também fazia a vez de chaminé, surgia um senhor alto, de bata e capuz vermelhos, com uma barba branca quase até lá abaixo, arrastando um saco de serapilheira, enorme. Sentava-se num banco, ali aparecido sem que se tivesse apercebido, saco entre as pernas. Tocava uma sineta. Punha-se a chamar a miudagem pelos nomes, entregando prendas. E era um rasgar de embrulhos, pinotes, e uma algazarra que chegava à rua. Pouco depois, por cima do barulho, ouvia-se a voz forte do avô, então meninos, vamos acabar a consoada. Voltava à mesa e via, de soslaio, que o senhor do capuz vermelho, bem com o banco, tinham desaparecido! No tamarindeiro a estrela brilhava, de lampadazinha às costas.
De regresso a casa, abraçado às prendas, sentado no banco de trás do velhinho Chevrolet de seu pai, ia pensando, eu sei, eu sei quem é o Pai Natal!
Hum… mas o meu avô não tem barba!
Lembra-se de o avô o levar a passear por entre as plantas cujas corolas, sorridentes, pareciam ter vida, quase falavam! Por vezes, quando o passeio acontecia já à noitinha, julgava ver estrelas a bailarem sobre as flores. Ele era menino, mas sabia, de um saber só dele, que aquilo era magia saída das mãos incansáveis do avô. Nunca lhe viu cansaço, o mais certo, pensava ele, é que o avô vivia o cansaço a sós. Assim, aprendeu a fúria de sonhar.
O reformado era um homem feliz, pai de muitos filhos, avô de inúmeros netos. Quando lhe falava ficava pregado às suas palavras. Escutava-as com avidez. Foi dele que um dia ouviu:
- O mais importante da vida é a felicidade, temos é que ser dignos, e não a deixar avariar!
Na quadra natalícia o avô mudava de afazeres. A consoada era em sua casa. No quintal das traseiras, sob um tamarindeiro lá residente, que enfeitava e iluminava, pondo-o a fazer de Árvore de Natal, não se esquecendo da Estrela nem do Presépio, mandava montar a mesa, acrescentada com umas tábuas sobre barris, para que toda a família coubesse. Não o largava. Acompanhava-o nas suas andanças da mesa para a cozinha, e desta para aquela.
O avô espreitava as travessas das rabanadas e das filhoses, os pratos da aletria, do leite-creme, e as terrinas das sopas de cavalo cansado. Perguntava se já tinham chegado a batata-doce, a mandioca, as mangas e os abacaxis, e se também havia cajus. Destapava a panela onde fervia o bacalhau, provando a água com o dedo, a ver se o peixe fora bem demolhado. Chamava a atenção para que as couves e os ovos não cozessem demais. Depois, enquanto outras mãos recheavam a mesa, deixava junto aos pratos dos netos, como era de seu costume, rebuçados e chocolates. Ainda dizia para a avó, não esqueças que o que hoje não for comido ficará para a roupa velha de amanhã.
Em celhas encostadas ao tamarindeiro mandava colocar as bebidas, refrescos para os gaiatos, outras para os adultos, tudo coberto com pedras de gelo. Sentada a família, era o último a tomar lugar, à cabeceira.
Iam consoando. Um pouco antes da meia-noite notava que a cadeira do avô ficava vazia. Lá foi ele outra vez, pensava. Então, alguém gritava chegou o Pai Natal! Traquina, desalinhada e aos gritos, como o avô a gostava de ver, a meninada saltava das cadeiras.
De trás do tamarindeiro, que também fazia a vez de chaminé, surgia um senhor alto, de bata e capuz vermelhos, com uma barba branca quase até lá abaixo, arrastando um saco de serapilheira, enorme. Sentava-se num banco, ali aparecido sem que se tivesse apercebido, saco entre as pernas. Tocava uma sineta. Punha-se a chamar a miudagem pelos nomes, entregando prendas. E era um rasgar de embrulhos, pinotes, e uma algazarra que chegava à rua. Pouco depois, por cima do barulho, ouvia-se a voz forte do avô, então meninos, vamos acabar a consoada. Voltava à mesa e via, de soslaio, que o senhor do capuz vermelho, bem com o banco, tinham desaparecido! No tamarindeiro a estrela brilhava, de lampadazinha às costas.
De regresso a casa, abraçado às prendas, sentado no banco de trás do velhinho Chevrolet de seu pai, ia pensando, eu sei, eu sei quem é o Pai Natal!
Hum… mas o meu avô não tem barba!
(Participação no desafio Natal da Fábrica de Letras)
25 comentários:
Amo estórias de Natal e essa está muito bela e para refletir. Lindíssima! Bjs amigo
Enternecedor...
Momentos que não ficaram presos no tempo, mas vieram guardados pelos caminhos da vida dentro de um coração que ao recorda-los volta a ser de um menino... Momentos de amor e magia.
Beijos
Elaine Barnes
É bom saber que esta história é para ti bela e para refelctir!
Bjs
Dulce
Não é o recordar de momentos de amor e de magia que nos faz viver?
Beijos
Amigo Carlos!
Cada um de nós guarda o menino que temos dentro de nós,apenas ele se encontra ligeiramente adormecido,em pedaços de algodão,tal e qual as barbas do avó,que nunca ficou cansado durante tanto tempo e magia do natal.
Beijinhos bfs Lisa
Gostava de ter tido Natais assim, intergeracionais, com avós e avôs meus. Infelizmente, não chegaram a viver para que os conhecesse.
Beijinhos. E obrigada por mais esta linda história.
Descobri muito cedo (com 4 anos)quem era o Pai Natal, porque era o mais novo entre irmãos e primos e o Natal da minha infância era passado com a família toda reunida ( só primos éramos 18)
Numa noite de Natal os meus irmãos... bem, o melhor é deixar esta história para um post lá no Rochedo.
Nem o me avÕ, nem o pai, nem nenhum dos meus tios tinha barba...
Carlos
A recordação da magia da noite de Natal é algo muito forte na minha vida. Em minha casa, não ia o Pai Natal, mas o menino Jesus, que escorregava pela chaminé de madrugada e colocava as prendas no sapatinho.
Gostei imenso desta sua história de Natal. As crianças, precisam de manter a fantasia do Natal, mesmo quando começam a desconstruir a história...
É pena que hoje em dia, a fantasia se perca cada vez mais cedo, fruto do consumismo com que se minam as pequenas cabeçinhas.
Um beijinho
Olá Amigo Carlos,
E aqui está mais uma lindíssima história, escrita pelo Carlos que lida com as palavras, como um grande escritor, se calhar até será possivelmente.
E este homem das barbas vem mesmo na altura certa.
Grande abraço bfs, José
- O mais importante da vida é a felicidade, temos é que ser dignos, e não a deixar avariar!
e deixamos sempre ...todo o ano
saudades de natais assim!!
um beijo
teresa
Agulheta
O menino vive sempre dentro de nós.
De vez em quando solta-se nas recordações...
Beijinhos bfs
Concordo que as crianças precisam de magia e fantasia nas suas vidas. Por vezes, descobrir que fomos "enganados" e que afinal não havia Pai Natal, pode ser uma desilusão. Nesta casa sempre levei a fantasia muito a sério... levavam-se cartas ao correio, e deixava leite e bolachas para serem encontradas apenas migalhas e copo vazio.. as prendas eram a dobrar... mas, no dia em que contei à minha filha,já em idade escolar, para não ser "gozada" pelos colegas, abraçou-se a mim com emoção:" então, todas estes anos, as prendas eram tuas, mamã?" E surpreendeu-me com a felicidade estampada no rosto, que eu não antecipara de todo... :)
Filoxera
Natais assim, ainda os vou tendo..., mas sem o Pai Natal...
Beijinhos
Carlos Barbosa de Oliveira.
A história no Rochedo, já!
Quero descobrir esse Pai Natal...
José
Este seu amigo é apenas um escrevinhador...
Grande abraço. bfs
Maria João
É triste que se deixe morrer a fantasia. Os tempos assim o ordenam, mas se cada um de nós guardar um pouco de fantasia, vamos andando melhor.
Um beijinho
Continuando assim
Eu luto para que a felicidade não avarie...
Um beijo
Carlos,
Obrigada sempre pelas tuas palavras cheias de carinho e delicadezas...
Mas vamos ao teu texto...
Primeiramente fique com vontade de ser os pássaros tratados com tanta ternura, depois o jardim com tamanha formosura por fim estar neste Natal do menino que passeou pelas fanatsias da forma mais pueril que poderia existir.
Tuas escritas são verdadeiras jóias
Beijinhos para ti
Carlos
Até eu, que não sou fã do Natal, gostei deste Pai Natal. É genuíno, cheio de ternura, como todas as recordações dos nossos Natais de infância.
Gostei muito, como sempre. E não, não acho que seja apenas um escrevinhador!
Bjs
Malu
Obrigado, amiga professora de além-mar, pelo comentário tão gentil!
Beijinhos
Eva Gonçalves
Gostei de ler esse contar a verdade à filha e de, na cara dela, ter encontrado o sorriso de felicidade!
Teresa
Apenas uma palavra: obrigado!
bjs
As histórias de Natal têm sempre uma certa ternura,uma certa magia, esta sua foi para além disso...
Parabéns!
Bjis
maria teresa
Esta história foi para além da ternura e da magia...
Diga mais!
bjs
Caro Carlos,
Tem AMOR, tem INOCÊNCIA tem LIÇÕES DE VIDA, tem MISTÉRIO, tem CUMPLICIDADE, ... quer mais?
E tudo isto meio escondido nas "acções", muito bem descritas, dos diferentes protagonistas...
Bj
maria teresa
Obrigado!
fiquei submergido, com falta de ar!
:)
Bjs
Precisa de auxílio médico? De respiração assistida?
Espero que não... Ficaria com problemas de consciência até ao final dos meus dias...
Bj
Amigo Carlos,
Eu adoro a forma como escreve...
Li deliciada o seu conto de Natal. É incrível a semelhança em muitos aspectos com a consoada portuguesa.
O bacalhau cozido, as couves, os ovos, as rabanadas, tudo.
A única diferença é que eu nunca vi o Pai Natal, lá em casa íamos para a cama e só de madrugada é que tínhamos uns presentinhos no sapato.
Vamos ter um fim de semana horrível, mas espero que faça o que me disse lá no Rau.
Abraço amigo,
Ná
maria teresa
Obrigado pela caixa de primeiros socorros.
Já passou. Ufa!
Bjs
Fernanda
Aquela também era uma consoada bem portuguesa, enriquecida com odores e sabores de outra cultura!
O Pai Natal mais não era do que a magia do meu sábio avô.
Abraço amigo
O avô não pode faltar na recordação de um Natal feliz. Sem avô acaba o Natal, não é?
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