sábado, 18 de dezembro de 2010

Do Mwata

O Sorriso
(Transpirar de uma memória)

Aumentou o som do gira-discos para que todo o pelotão ouvisse Jingle Bells, naquela véspera da Consoada. Ordenou, de seguida, que verificassem as armas e munições, e distribuíssem a ração de combate pelos bolsos dos camuflados. Ao pescoço pendurou a máquina fotográfica, companheira de andanças, guardadora de memórias.
Com o nascer da manhã, cinzenta e cacimbeira, chegara a ordem para avançarem ao encontro da sanzala à beira da lagoa, bombardeada de véspera por ser tida como abrigo do inimigo. Natal sem presépio seria o seu, vivido a verificar danos, registar baixas infligidas, marcar a sanzala como território vencido e domado.
Ultrapassada a ourela da mata, caminharam separados pelos contornos das árvores, dobrando-os como esquinas cortantes num andar penoso, procurando pisar com cuidado pedaços de chão não estalantes para que o solo se não fizesse ouvir, denunciando-os. Ele ia pensando que este, como todos os outros passos que até ali o tinham levado, mais não eram do que um procurar da inutilidade, de um obstinado e cego adiar do que a História iria escrever.
Chegados, a névoa confundia-se com o fumo que subia da terra queimada, das lavras ardidas, das cubatas em destroços. A paisagem já não era verde, como a deixada para trás, mas turva. Diante dos olhos teve ele, surpreso, gente a chegar do outro lado da lagoa: crianças, mulheres e homens idosos. Vindos de mais atrás, ouviu latidos e cacarejos. Baixem as armas! Ordenou.
Com uma criança pela mão, um dos velhos, quiçá o soba, caminhou, lento e desconfiado, ao seu encontro. Bom dia, disse. Bom dia, respondeu-lhe, perguntando a seguir: onde estão os homens novos? Aqui não tem, já não tem deles faz muito tempo, foram na guerra da guerrilha, anunciou a voz do velho. Na guerra?! Então, velho, o que aconteceu aqui? Aqui, senhor, só nos mandaram bombas, nos queimaram as lavras, secaram a terra e nos fizeram fugir com os cães, os cabritos e as galinhas. Não teve guerra, não senhor. Os soldados de matar só chegaram agora. E mortos? Não tem deles, senhor.
Franziu-se-lhe a testa, entregou-se ao esforço de tentar compreender o que acabara de ouvir. Soldados de matar…!? Nisto estava, com o pensamento querendo correr para longe, quando a criança se soltou do velho e lhe puxou por uma das mãos. Tenho fome, mais velho da tropa, me dá comida. O dizer do menino entrou, turbulento, por ele adentro, fazendo-o cerrar os punhos e levá-los ao peito.
Num repente esvaziou os bolsos, deitando para o chão o que lhe restava da ração de combate. A criança atirou-se a uma embalagem. Pediu-lhe, por gestos, que a abrisse, levou à boca o que dentro dela saiu, trincou e logo fez o mais lindo sorriso, com uma mosca pousada na ranhoca à mistura, que ele alguma vez vira, sorriso acompanhado por um tagradeço amigo! Deste-me o meu presente de Natal, pensou sem o dizer. Guardou o riso na máquina das memórias. À noite dormiu ao relento. No céu apenas brilhava uma estrela com ar de andar à procura, e um fulgor diferente do que era hábito ver-se por ali luzir.
Aquele sorriso transformou em paz a agitação do seu interior, mudou-o para sempre, já não era o que nunca fora nem quisera ser, um soldado de matar, mas um amigo.
Regressado ao aquartelamento o seu pelotão foi autorizado a ajudar na reconstrução da sanzala. Semanas passadas o quimbo ajeitou-se. Reergueram-se as cubatas, os animais regressaram ao seu andar à solta, mulheres e homens idosos estavam de novo entregues ao amanho das lavras, as crianças brincavam, a velhice dos homens voltara a ser aquecida pelo sol, as mandioqueiras voltaram a crescer, bem como o caxinde. O soba podia, de novo, sentar-se à porta da cubata. Pela lama das franjas da lagoa já não corriam pés em fuga. Ele terminou o tempo de andar fardado.
No avião que o levou de regresso à terra da sua casa distante, releu a carta escrita à mulher no dia de Natal. Nela lhe contara a festa de despedida na sanzala da lagoa, e que tinham dado o seu nome a uma mandioqueira. Depois, tirou do bolso a fotografia do sorriso e falou-lhe: tagradeço amigo!

20 comentários:

Eu, Meu Contrário e Minha Alma disse...

Olá meu amigo,
Sabe que votei nesse seu texto não assinado?
Dei a pontuação máxima...Não por o tema, mas também por ele. Não pelo conteúdo, mas também por ele. Não por me avivar memórias, mas também por isso. Não pela humanidade, mas também por ela. Foi por tudo isso em parte, mas foi fundamentalmente por esta parte:
"Pela lama das franjas da lagoa já não corriam pés em fuga."

Espero que ganhe...

Abraço

São disse...

Lindo, lindo mesmo!
Comovida, o abraço.

Laços e Rendas de Nós disse...

Carlos

Gostei do teu conto mas gostei mais do outro a que dei a pontuação máxima.
Percebi, pelo conteúdo, que este era o teu mas gostei mais do outro.

Parabéns e um Bom Natal.

Beijo

Carlos Albuquerque disse...

Eu, Meu Contrário e Minha Alma,
Soube do seu voto quando fui ao blogue da promotora ler as pontuações. Obrigado.
Um abraço.

São,
Obrigado pelo carinho das suas palavras.
Abraço

Carlos Albuquerque disse...

acácia rubra
Se tivesses votado no meu conto apenas por teres percebido, pelo conteúdo, que, eventualmente, ele era meu, não me sentiria bem.
Deste a pontuação máxima ao que entendeste ser o melhor. Foste correcta e isenta. Bem hajas por assim teres procedido.
Obrigado e Bom Natal também para ti.
Beijo

Filoxera disse...

Tão lindo, este conto, Carlos!
Viajo e sorriu enquanto leio os seus posts.
Um beijinho.

Carlos Albuquerque disse...

Filoxera,
Fiquei feliz ao ler o que escreveu.
Obrigado.
Um beijinho

Penélope disse...

Vim para deixar um grande NATAL e um ANO NOVO repleto de PAZ, HARMONIA e PROSPERIDADE.
BOAS FESTAS!!!!

Carlos Albuquerque disse...

Malu,
Obrigado, Amiga, já fui a tua casa desejar-te o mesmo.
Abraço

UBIRAJARA COSTA JR disse...

Meu querido amigo, vim agradecer a gentileza de sua presença lá no Prosa para uma mensagem de Natal, tão bonita, tão doce... Muito obrigada, Carlos.
E. agradecendo, retribuo, desejando a você e a sua família, a Paz do Menino em seu lar e em seus corações. Feliz Natal.

Beijos

Agulheta disse...

Amigo Carlos.Agradeço as palavras que deixou no blog,e acabo de ler um texto maravilhoso onde a paz e amizade partilham momentos de vida.
Desejo um Feliz Natal,junto dos seus,com amor e muita saúde.Vou estar ausente uma semana voltarei para desejar bom ano.
Beijinho

Marilu disse...

As festas natalinas chegaram e mais do que nunca é hora de falarmos de paz, de vivermos em plenitude a mensagem de Cristo; Natal é sinônimo de família, de união de aproximação das pessoas,e quando essas pessoas se sentem próximas é sinal que o sentido do Natal se realizou. Tenha um lindo e abençoado Natal. Beijocas

Fernando Freitas disse...

Vim aqui com outras intenções mas não pude de deixar de ler o seu excepcional texto. Parabéns.

Obrigado pelos votos expressos na "A Beiça" e, desta forma mais pessoal, quero deixar os meus desejos de Festas Felizes e um novo ano cheio de sucessos pessoais e profissionais para si.

Kandandos,

Fernando Freitas

Fê blue bird disse...

Meu amigo:
Estou comovida, pela intensidade das suas palavras, pela sensibilidade e principalmente pela humanidade nelas contida:
"Guardou o riso na máquina das memórias. À noite dormiu ao relento. No céu apenas brilhava uma estrela com ar de andar à procura, e um fulgor diferente do que era hábito ver-se por ali luzir."


Desejo-lhe um Natal cheio de Saúde, Amor e Paz!

beijinhos

Anónimo disse...

Caro Carlos
Gostei muito do conto mas, como só o li no sábado, não pude votar.
Venho agradecer e retribuir os votos de Boas festas. Tenha um santo Natal e que 2011 seja o melhor possível
Abraço

maria teresa disse...

Leio este texto pela quarta vez e mais não digo...apenas lhe peço que continue a escrever com a "alma", a deixar-nos entrar no seu eu.
Não tenho que justificar nada em relação ao modo como votei, sinto-me superior àquilo a que chamo minudências, para empregar um termo de certa forma aligeirado.
Parabéns!
Abracinho meu

Mª João C.Martins disse...

Carlos

Há contos, cujas palavras que o compõem, agarram-se-me aos olhos e neles ficam a balançar no mar que se espraia, rosto abaixo.
Há contos que me abrem o peito que fica a sangrar, com o coração de gente grande a pulsar vida e sofrimento. Gente para quem humanidade não é um mero pensamento natalício.
Há escritores de contos que são enormes escritores de vida!

Um beijinho amigo.
Feliz Natal, com muita saúde e o aconchego de todos quantos ama.

heli disse...

Carlos.

Adorei seu texto.Ele me fez refletir sobre a beleza e a simplicidade da vida.
Bom Natal,
Beijos daqui deste lado do Oceano...

manuel aldeias disse...

Adorei este texto, tambem me revi nele nos meus tempos de soldado nas matas angolanas.
Estou a ler e comentar no computador de um amigo, o meu avariou e foi enviado ao representante.

Neve disse...

Olá! Vim agradecer pelos votos de bom natal e li seu texto. Coincidentemente, eu tb escrevi algo sobre a força de um sorriso, antes de ver seu texto. Estamos portanto de acordo nesse ponto: sorrir é preciso!

Desejo-lhe tudo de belo nesse natal. (A neve vc já tem, não é? ).
Um grande abraço!