domingo, 7 de novembro de 2010

Do Viajante

A Corrupção mata

"Dos seis mil milhões de habitantes do planeta, cinco mil milhões são pobres. Partindo desta realidade, cada vez mais associações se mobilizam, em redor da OIT e da UNICEF, para pôr fim a um dos mais revoltantes escândalos do nosso tempo e para exigir o direito sagrado de todas as crianças a uma vida decente.
Essas associações dirigem-se em primeiro lugar aos chefes de Estado e de Governo de todo o mundo. E verificam que, mesmo ao mais alto nível, vários desses dirigentes políticos, na altura da mundialização, se deixam apanhar pela febre do dinheiro fácil e da especulação, sucumbindo à corrupção
."

Li isto no blogue da São. Não pude deixar de pensar que a Humanidade continua violenta no seu caminhar, indiferente aos que sofrem, atirando para a morte, pela doença e pela fome, milhões de vidas. Em que saco irão cair apelos como este? Em Angola fui testemunha de situações que, lamentavelmente, continuam a ocorrer por todo o mundo. Deixo-vos à reflexão:
(…) Os 16 anos (1975 a 1991) do primeiro grande conflito armado entre os angolanos, deixaram o país exaurido e com o aparelho produtivo reduzido a zero. O três caminhos-de-ferro destruídos. A rede das rodovias alcatroadas, das estradas de terra batida e das picadas estava intransitável, por força do grau de destruição provocado por bombardeamentos, pela passagem das lagartas dos carros de combate e, ainda, pela erosão resultante da falta de assistência. E, porque ocupadas nos seus nós estratégicos de ligação, ora pelas FALA da UNITA, ora pelas FAPLA do MPLA, ninguém se atrevia a circular. A tudo isto acrescia a malha de minas colocadas em todo o País (portuguesas, sul-africanas, russas, cubanas e angolanas), barrando os caminhos que as populações percorriam a pé, nas suas trocas comerciais: as do Litoral com sal, peixe, óleo alimentar e sabão; as do Interior com produtos da terra e carvão. Estimativas da ONU apontavam para a existência de 10 milhões de minas. Uma por cada habitante!.

Foi então montada a mais gigantesca operação de abastecimento por via aérea do mundo. Recebidos de doadores internacionais e da Comunidade Europeia, alimentos e outros bens de primeira necessidade começaram a ser transportados regularmente para as províncias, em enormes cargueiros de fabrico soviético (Tupolev e Antonov) e norte-americano (Boeing). Registaram-se, durante semanas, 17 voos diários, com origem em Luanda, outros ocorrendo a partir do aeroporto da Catumbela, a Sul, entre Lobito e Benguela, aproveitando o desembarque, no porto do Lobito, de produtos doados.

Agências especializadas da ONU (PAM e UCAH) coordenavam os envios das doações, que eram entregues no destino a organizações humanitárias como a Cruz Vermelha e a Caritas. Estas, por sua vez, responsabilizavam-se por fazê-las chegar às populações carenciadas. Para custear o transporte de cada tonelada entre a entidade que a recebia e os necessitados, os doadores entregavam também 100 dólares. Contas da altura: transportando cada avião, em média, 20 toneladas, os 17 voos traduziam-se em 340 toneladas diárias, equivalente a qualquer coisa como 34 mil dólares. O que era feito com aquele dinheiro? Esbarrando em silêncios e sistemáticas indisponibilidades das fontes de auscultação indispensável (PAM e UCHA), resultaram frustradas quaisquer investigações. Foi-me apenas possível saber, junto das organizações humanitárias de destino, que estas nunca tinham ouvido falar de verbas para transportes.

Outra situação nada clara: a venda, em alguns mercados paralelos, de produtos de consumo, como leite, azeite, óleos alimentares, farinha, açúcar e sabão, em embalagens da ajuda humanitária. Visitei vários desses mercados, um deles no Huambo (antiga Nova Lisboa) acompanhado por dois elementos do PAM e por um oficial do Comando da Polícia local, a quem manifestei e minha estranheza e pedi uma explicação. Obtive sorrisos, encolher de ombros e um uníssono «foram roubados».

Ficou-me, para sempre, a certeza de fortes conivências das autoridades angolanas e dos agentes humanitários, na candonga dos bens recebidos dos doadores internacionais para os mercados paralelos, onde eram vendidos a preços que a maior parte das pessoas não podia pagar. E outra certeza: a de que a caridade internacional ajudava a engordar a fortuna de alguns, e a prolongar a agonia da morte de muitos outros. As denúncias que então fiz, nas minhas reportagens, de nada valeram. Tudo continuou na mesma (…)
(In Angola a Cultura do Medo, edição Livros do Brasil, 2002)


8 comentários:

Mª João C.Martins disse...

E irá continuar, Carlos. Porque o Homem é o grande predador de si mesmo e, na sede de ganância, torna-se insensível a tudo o que está para além do seu próprio proveito e segurança.
Nem todos são assim, sabemos. Mas, no meio da desgraça de tantos que sofrem e morrem à fome e na insegurança provocada pelas lutas de poder, existem sempre os abutres que disso se aproveitam.
Ao Humano de condição, falta-lhe a dignidade do humanismo na circunstância, na protecção e ajuda dos seus semelhantes e na defesa da vida, para além de quaisquer outros interesses. Não é assim. E assim nunca será, infelizmente.
Resta-nos a indignação em forma de grito, o impedimento desta continuidade no que está ao nosso alcance e a denúncia, para que, culturalmente, a corrupção não se instale como uma característica da existência da espécie humana. Porque a sê-lo, esse será o prenúncio do fim de todas as coisas.

Um abraço

AvoGi disse...

vim cá entrando sem bater, mas como estava aberta pensei que podia e assim fiz, penetrei neste espaço.
estive a dar a volta À casa a fazer o reconhecimento e deliciei-me com toda ela , mas foi na biblioteca que parei e fiquei um pouco, nao poso ficar mais mas fica aqui a promessa de volta. pois se a MARI TERE (das beijocas com papel)diz que é bom acredito. kis :=):=)

AvoGi disse...

Voltei. è qu olhei com mais atenção para os convidados que visitam esta casa e afinal estou entre amigos vai daí coloquei a minha foto ali no canto direito. kis :=)

Carlos Albuquerque disse...

AVOGI
É com grande satisfação que a vejo nesta sua visita à minha cubata. Espero que volte. Será sempre bem recebida.
Estamos entre amigos.
Ainda bem!
Vou visitá-la.
BJS

São disse...

Fico orgulhosamente grata pela sua delicadeza em me citar.

Bem haja!

Carlos Albuquerque disse...

São
Não tem que estar grata.
Eu é que lhe agradeço a possibilidade que me deu de falar num assunto tão importante, tema de que, infelizmente, conheci os podres meandros.
Abraço

Filoxera disse...

Infelizmente, a corrupção e a miséria perpetuam-se...
Beijinhos.

Brown Eyes disse...

Continuou e continuará porque, infelizmente, o poder tem mais força e os pobres estão a deixarem-se vencer, deixaram de lutar e conformaram-se. Um só nada consegue fazer e a união acabou há muito. A ameaça de se perder tudo leva as pessoas a calarem-se. Beijinhos