sábado, 13 de novembro de 2010

Memórias

O nosso grupo das pescarias nas Palmeirinhas, aquele pedaço do Paraíso a Sul de Luanda, tinha um pisteiro, de nome Santana. Era um homem de idade muito andada com barbas branqueadas pelo correr do tempo e iluminadas pelo cacimbo soprado do mar. Casca das mãos rugosas de tanta vida fiar, pernas arqueadas e uma ligeira corcova nas costas. Cigarro de enrolar sempre nos lábios, com a ponta acesa virada para dentro. O amigo Santana, como ele queria que o tratássemos, era pai de muitos filhos, tantos que lhes havia perdido o número, avô de netos que os dedos de mãos e pés não chegavam para contar (dizia ele), e homem de muitas mulheres.
Nascido ao lado do mar, e abraçado a ele sempre ter vivido, Santana sabia da vida nas águas das Palmeirinhas como ninguém. Tal era o seu conhecimento, que o tinha como um ser abençoado e protegido pelos criadores do saber. Dele sabíamos, também, que não gostava de andar a correr atrás do tempo.
Ao nascer da noite, Sábado sim, Sábado não, lançávamos ao mar o barquito com motor fora de bordo e o Santana sentado à popa, de petromax na mão. Meia hora depois de cortados os caminhos do mar, o velho dizia “deita ferro”. O ferro era a âncora. Escuro como breu, nada víamos, mas ele dizia “aqui tem peixe”. E tinha! Lá vinham os roncadores, os parguetes e uma ou outra macôa. Quando deixava de dar, ouvíamos: “tira o ferro”. Levantando o braço direito com o petromax na mão, para que víssemos, indicava-nos novo rumo. Assim continuávamos até que ao amanhecer o Santana ordenava o fim da faina, proclamando ser tempo do mata-bicho. Abríamos o farnel, tirávamos umas cucas da geleira portátil e, dum saco especial, uma garrafa de vinho tinto, só para o nosso amigo não apreciador de cerveja. Ali sobre aquelas águas, avistando terra feita uma ténue linha ao fundo, embalados pela pequena e acariciante ondulação de um mar sem igual, nos púnhamos à conversa, saboreando um delicioso arroz de azeitonas.
Muitas perguntas fizemos ao nosso pisteiro. Poucas respostas nos deu. Um dia, fomos mais persistentes. Porquê que ele, uma espécie de soba da sua sanzala, por todos respeitado e obedecido, perdia uma noite de Sábado à pesca connosco, a troco de um farnel, uma garrafa de vinho e um pacote de tabaco de enrolar, nada mais querendo, por muito que oferecêssemos, incluindo dinheiro?
Porque, respondeu, com o jeito da nossa conversa não sou mais como a cola que quando seca ninguém mais lhe usa.


16 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

O pisteiro
ensinou o pescador
que por aqui anda
escrevendo memórias
a troco de coisa nenhuma
só porque, também ele, não é mais como a cola que quando seca ninguém mais lhe usa

Abraço

maria teresa disse...

Que memórias maravilhosas tem!
Que feliz infância e adolescência foi a sua!
E que beleza musicalidade imprime às palavras quando as descreve!
Abracinho meu.

heli disse...

Carlos.
Seu relato é contagiante.Deu para "conecer" o Santana e fazer parte dessa tão bem narrada memória.
Vim visitá-lo e desejar um execelente domingo.
Aqui, temos um feriadão para descansar um pouco dessa nossa rotina de correrias.
Segunda feira estaremos comemorando a Proclamação da nossa República.
Como o final de mais ano se aproxima, é bom retomar as forças para enfrentar os desafios que ainda temos pela frente antes que 2010 se finde.
beijos
heli

Neve disse...

Muito poético seu texto. Belo personagem você homenageou. Um abraço pra vc, do Brasil!

Marilu disse...

Querido amigo, como é bom ter boas lembranças da época de criança, essas recordações são eternas e fazem com que sejamos pessoas melhores. Tenha uma linda semana. Beijocas

Osvaldo disse...

Caro amigo Carlos;

Bela "Crónica do Homem do Mar" com estórias daquelas que ficariamos o dia (e noite) inteiro a escutar.

Mas adorei a última frase. Sâo palavras de alguém bem vivido.

Um abraço, amigo.
Osvaldo

Filoxera disse...

Adorei esta história. Mais uma que me prendeu e deleitou. E a mensagem de que a experiencia de vida é uma riqueza incalculável.
Bom Domingo.

Joaquim do Carmo disse...

"Memórias" que são pedaços de vida... e, que vida! Valeu a pena insistir na pergunta: sábia resposta lhe coube!
Bom Domingo, amigo e obrigado!

Rosa Carioca disse...

Quantas vezes, ao ler os seus textos, tenho a oportunidade de voltar à Luanda que ainda vive na minha mente. Todos os domingos, meus pais e eu íamos a uma praia que chamávamos "das Palmeiras" (será que é esse o lugar?)
Meu pai também saía para pescar com o Castelo e o soba da aldeia dos pescadores, perto de casa. E contava a mesma atitude: de um momento para o outro, o dongo parava e havia peixe. Como eles sabiam, só olhando para o mar? Sabiam!
E lembro-me bem de pescar, com meu pai, os roncadores!!! (alguns voltavam para o mar, pois eu ficava com pena de vê-los a roncar)
E meu pai tinha um amigo que vivia no bairro da Cuca, onde havia a fábrica da cerveja, e onde comi uns camarõezinhos pequeninos, fritos. Bem bons!
Saudade!!!

Sandra disse...

Bom dia muito especial a ti amigo. Como está. As vezes demoramos mais não o esquecemos os amigos. É com muito carinho que passo por aqui.
sandra

Sandra disse...

BOM DIA, MUITO ESPECIAL.
VENHO LHE ENTREGAR EM MÃOS UM CONVITE MUITO ESPECIAL PARA A FESTA DE AMANHÃ.
VOU TE ESPERAR COM MUITO CARINHO...

FESTA SURPRESA

LOCAL: CURIOSA.
QUANDO: 16.11.2010
HORARIO: DURANTE TODO O DIA.

VENHA PARTICIPAR. TENHO CERTEZA QUE VAI GOSTAR MUITO.
VOCÊ AJUDAR A BRILHANTAR A FESTA.


CONFIRME SEU CONVITE NA CURIOSA.
VOU TE ESPERAR.
VAMOS CANTAR E FESTAR COM MUITA ALEGRIAS.
CARINHOSAMENTE
SANDRA

SEVE disse...

Só "O VELHO E O MAR" me tinha deliciado deste modo.

Carlos Albuquerque disse...

Rosa Carioca,
Não sei se se trata do mesmo lugar. As Palmeirinhas de que falo são a Sul de Luanda, na estrada que ruma à Barra do Cuanza passando pelos morros da Cruz e dos Veados.
É curioso, mas no nosso grupo de pescarias também havia uma Castelo, amigo já falecido, jornalista, proprietário do jornal Angola Desportiva.
Quantos aos camarõezinhos, do Bairro da Cuca, ou da Restinga, na Ilha de Luanda, dá mesmo saudades...

Carlos Albuquerque disse...

SEVE,
Registo com satisfação a sua visita à minha cubata.
O facto do meu escrevinhar o transportar a uma obra de Heminguay deixa-me sem palavras!
Volte quando quiser, será sempre bem-recebido.

Rosa Carioca disse...

Amigo Carlos, apesar de não ser o mesmo lugar, também sei qual o lugar a que se refere. Um amigo de meu pai levou-nos lá, um domingo, para um piquenique em família. Ainda tenho as fotos desse momento.
Saudades!

Rosa Carioca disse...

O "meu" Castelo era pescador, marido da "minha" Ana e um bom homem.