sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Cinquenta anos depois

Em Luanda, na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de angolanos armados com catanas e varapaus, atacou a Casa de Reclusão Militar e a Cadeia Civil, iniciando a insurreição contra o regime colonial português. Vesga e incapaz de entender que a História iniciara, de há muito, de forma imparável, a escrita do livro das independências dos povos, a ditadura salazarista respondeu “rapidamente e em força”, alimentando pela força das armas, e não pela da razão, uma guerra de 14 anos. Durante anos Salazar instilou a mentira: em Angola não se travava uma guerra, mas o combate a um grupo de terroristas que punha em causa a nação lusíada.
A 11 de Novembro de 1975 os três movimentos de libertação (MPLA,UNITA e FNLA) proclamaram a independência de Angola, embora em cidades diferentes: Luanda, Huambo (antiga Nova Lisboa) e Ambriz, respectivamente. Só a do MPLA foi reconhecida e aceite pela Comunidade Internacional, incluindo a Organização de Unidade Africana. O Brasil, no tempo do presidente Ernesto Geisel, foi o primeiro país a fazê-lo. Portugal só tardiamente o fez.
Muito se tem dito e escrito sobre a guerra colonial, e, igualmente, sobre as guerras civis que se lhe seguiram, alimentadas pelos dois senhores do mundo de então: Estados Unidos e União Soviética. Eu próprio publiquei um livro em 2002: Angola – A Cultura do Medo. Não venho, por agora, nada acrescentar. Angola é hoje um país independente, em paz desde 2002. É certo que o caminho seguido não tem sido o desejado pela “Nação Crioula do MPLA”: Uma Democracia Plena com respeito pelos direitos humanos, activista contra a corrupção, reconhecimento e harmonia inter-racial, respeito pelas minorias; um verdadeiro Estado de Direito. Estou convicto, contudo, que os angolanos lá chegarão.
Hoje, ao recordar a data, passei pelos meus arquivos. Peguei num livro. Tem como título “ A Última Grande Oportunidade Para a Paz em Angola”. Foi escrito em Maio de 1999 (depois de mais um acordo de paz entre o Governo de Angola e a UNITA), pelo embaixador norte-americano Paul Hare que conheci pessoalmente, e foi representante especial dos Estados Unidos no processo de paz em Angola, entre 1993 e 1998.
Diz o embaixador, a abrir o seu livro:
«Os angolanos contam habitualmente a seguinte história do seu país: no princípio, quando Deus criou o mundo, ofereceu a Angola as partes melhores, mais belas e mais ricas, e o resto do mundo ficou a lamentar-se. Mas a história da criação de Deus continua. De acordo com os angolanos, Deus lançou uma maldição sobre Angola: a de que esta Terra Prometida nunca passaria de uma ficção. A razão para esta infelicidade é o mau carácter do povo angolano que, de forma figurativa, Deus terá retirado do fundo do barril e condenado à miséria e a disputas constantes».
Conheço bem os angolanos. Sei que, como nós, são pródigos em ironizar sobre si próprios. Aquela facécia, porém, nunca a escutara nem lera. Surpreende que um diplomata tenha aceite, que no princípio Deus andou por aí, de cajado empunhado, em trabalhos de criação, fazendo umas terras, abençoando-as, mas amaldiçoando-lhes os povos que por lá deixava. Outras, erguendo-as, para logo de seguida as anatematizar, enquanto lhes santificava as gentes, numa espécie de carambola divina.
O que dirá o Sr. Hare, se um dia escrever um livro sobre o seu país?

6 comentários:

Roberta de Souza disse...

Seus textos são ótimos!
É muito bom conhecer estas histórias!!

Bom fim de semana!

Beta

Marilu disse...

Querido amigo, seus textos sempre nos trazem de volta a história que a maioria de nós desconhece. Tenha um lindo final de semana. Beijocas

Fê blue bird disse...

Amigo Carlos:
Os norte-americanos têm uma maneira muito particular de se referirem aos outros povos, acham que não procuram compreendê-los mas sim submetê-los.
Um texto excelente e cheio de sabedoria.
Também desejo o melhor para o povo angolano.

Beijinhos e bom fim de semana

Anónimo disse...

Lentamente, o povo angolano vai construindo o seu futuro de uma forma promissora. Pelo menos são esses os relatos que me fazem amigos que para lá foram trabalhar nos últimos anos.
Abraço

Rogério G.V. Pereira disse...

Caro Carlos Albuquerque, li primeiro o post seguinte. Repito aqui o que lá comentei é uma agradável novidade sabe-lo autor (suspeitava). Quanto ao futuro de Angola sou da opinião do CBO, mas as coisas vão andar muito lentas...

Abraço

Brown Eyes disse...

Tens toda a razão. Para quem não conhece o povo pode ficar com uma noção errada dela. Merecia que lhe pagassem da mesma moeda, claro que sim.
Excelente, como sempre. Beijinhos