quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O meu Mwata Milagre

Na casa da minha infância trabalhava um Mwata de nome Milagre. Criado de servir (como naqueles tempos se dizia), o velho era para todos, não um empregado, mas um membro da família. Conversava, dava conselhos, resmungava, arrumava uma cadeira fora do sítio, e lá ia fazendo uns trabalhos, poucos, na cozinha.
Nos entardeceres dos dias de escola, quando eu e amigos regressávamos a casa, juntávamo-nos com ele aos pés de uma mandioqueira no meu quintal.
Magro e seco como um abacateiro, alto como as mangueiras da Funda, carapinha e barbicha esbranquiçadas, o negro Milagre era velho como um embondeiro. Se lhe perguntavam não sabia dizer a idade nem mesmo se menos velho alguma vez tinha sido. E eu pensava: o meu Mwata nasceu já assim com idade crescida e sábio.
Com o Milagre, ficávamos até as mães nos chamarem. As suas mãos secas de dedos finos e compridos, esculpiam no ar histórias de encantamentos, que escutávamos seduzidos. De quando em quando interrompia-se, quedando-se em silêncio a fumar um cigarro enrolado com a parte acesa virada para dentro da boca, como fazia a lavadeira enquanto esfregava a roupa com o filho dormitando agarrado às costas por um pano envolvendo-lhe o peito.
Às vezes, o Milagre alçava os braços.
Não entendia porque o fazia.
Pareciam-me impulsos do coração do Velho, em busca de mistérios perdidos ou de acontecimentos para anunciar, lá por cima, nas terras do céu. Olhava-o, a ver se sim, mas permanecia inescrutável. – Não resisti. Um dia, perguntei-lhe:
- Porque te chamas Milagre?
Virou-se para mim. Ameigou-me o queixo e o cabelo com as mãos. Levantou-me suavemente a cabeça. Deixou repousar os seus olhos nos meus, e respondeu:
- Porque Deus me fez, e a minha mãe me disse assim!
(Esta saudade não passa!)


9 comentários:

Agulheta disse...

Carlos. As memórias de criança,jamais esquecem,como prova aqui no texto que li.
Beijinho

rosa dourada/ondina azul disse...

Que ternura se respira ao ler este texto!

Belas recordações de infância,
onde a vida sorria e nos levava a brincar!


Beijo,

Mª João C.Martins disse...

Carlos

Quando leio o que escreve sobre a sua infância, consigo quase tocar esses laços de ternura que ficaram, em fortes nós, presos à sua vida.
Coisas pequenas que constroem as almas grandes e generosas...

Um beijinho

Filoxera disse...

Estas saudades estão tatuadas no coração.
E originam textos tocantes, como este. Adorei!
:-)
Um beijo.

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Olha... simplesmente maravilhoso texto. Confesso que a frase final do velho me arrepiou.Que bacana! Um abraço e ótimo final de semana

José disse...

Carlos

Tudo nos marca na vida, mas as lembranças de criânça ficam mais marcadas ainda.
parabéns pelo o bonito texto

abraço, Jose

✿MIUÍKA✿ disse...

Muito obrigada amigo,pelo bonito comentário,mas não me diga para eu não pôr coisas bonitas,depois da luta para as encontrar,o que diriam os meus seguidores,além de que procuro sempre agradar e me sentir realizada,colocando o que eu gosto e esperando que gostem também,embora eu tenha a noção,que nem sempre isso acontecerá.
Gostei da história do Milagre,é muito bonita e transporta-nos a outros mundos,onde nunca estive.
Um bom fim de semana e um beijinho...MIUÍKA

mariabesuga disse...

O encantamento das estórias que nos fazem felizes as memórias...

Um abraço

O mar me encanta completamente... disse...

Carlos, venho me desculpar pela ausencia, mas não estou bem de saude.
Estamos muito traumatizados e tristes com tudo o que aconteceu, (viste la no meu blogue)
Vim agradecer teu carinho,
e dizer que é sempre uma delicia "viajar" com vc
nos teus textos tão convidativos.


Bom fim de semana.