quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Do Viajante


Hora vulgar

Acorda a esta hora, como tantas outras, uma hora vulgar. Apenas uma hora de agora, sem história, a não ser a que lhe possa escrever, se o vier a fazer. Pela janela vê tudo à volta ainda escondido no cacimbo. Cacimbo diferente, este. No biombo de nuvens em dança, são mais as brancas do que as cinzentas. O pingar miúdo e frio, soprado pelo vento, pica como fogo molhado, pior do que a mosca que lhe pousa sobre a mão, fugindo de seguida, enxotada por um mexer de dedos. Gesto para espantar, apenas para tal serviu.
O cacimbo, do tempo e do homem, é um sem sol, esmaece o traço e estreita o arco das cores da vida. Apesar de assim ser, ainda deixa perceber um sorriso no recém-acordado. Fosse este um crente de poderes divinos e, por certo, aquele sorriso seria uma aquiescência: tudo parece bem, como os deuses querem. Como o não é, desfaz-se do desenho dos lábios, boceja e diz esta manhã bem podia ter-se apresentado com outra compostura, não aparecer assim, a querer agarrar-me à toa, feita belzebu, desassossegando-me o jeito!
O enfastiar-se de pronto se lhe vai. Não se deixa acorrentar. Não só os deuses as têm, ele também é senhor de algumas artes, como a de virar o cacimbo às avessas, dando-lhe cor.
Sai para a rua a procurar a história que há-de escrever para a hora vulgar que o despertou.

12 comentários:

Laços e Rendas de Nós disse...

Muito bonito!

Beijo

Rogério G.V. Pereira disse...

È um excelente exercicio de escrita.
Palavras precisas, bem trabalhadas.
Palavras que fluem, palavras exactas.
Mas meu amigo, levante lá o véu.
O que é que depois aconteceu?

Abraço

Carlos Albuquerque disse...

acácia rubra
Obrigado pelas tuas palavras simpáticas.
Beijo

Carlos Albuquerque disse...

Rogério Pereira
Meu caro amigo.
Vou pedir ao Viajante para levantar o véu. Do que ele mostrar darei conta.
Promessa feita, para cumprir.
Abraço

Si disse...

Há textos perfeitos.
Com palavras destinadas umas para as outras num alinhamento imaculado.
E sempre, Carlos, sempre, com aquele tempero africano que lhe dá este sabor inconfundível e me faz apreciar imenso a sua escrita!

Marilu disse...

Querido amigo, lindo texto..Beijocas

maria teresa disse...

Os seus textos têm tanta poesia que me dão alento para continuar a minha caminhada... Suspiro e com este sopro de vida vai parte da minha intranquilidade e voltam-me os sonhos.
Abracinho

Daniel C.da Silva disse...

"O cacimbo, do tempo e do homem, é um sem sol, esmaece o traço e estreita o arco das cores da vida"

Existe uma quase "mecânica" onírica, à falta de melhor termo, para breves trechos cujas palavras se envoltam de beleza. E nao é elogio. É constaçao.

UM grande abraço

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Olá amigo Carlos!

Segui-te do Rogério até aqui!
Há muito tempo que não vinha cá a casa...e que saudades!!!

Perguntarás, e porque não vens?
Porque quem não aparece ... esquece!
Não te esqueci, mas não há alguma verdade no ditado, não nego!

Amigo, à procura da inspiração numa manhã de neblina cinzenta, saíste para a rua e escreveste um belíssimo texto, como sempre!

Beijinhos da tua amiga,

RENATA CORDEIRO disse...

Há quanto tempo não leio algo tão fluido e curioso! Gostei muito, Carlos!

"Fácil trocar as palavras

Difícil interpretar os silêncios

Fácil caminhar lado a lado

Difícil saber como encontrar-se

Fácil beijar o rosto

Difícil chegar ao coração

Fácil apertar as mãos

Difícil reter o calor

Fácil sentir o amor

Difícil conter a sua torrente

Como será o interior de outra pessoa?

Quem o saberá sonhar?

A alma do outro é distinto universo

Com o qual não há comunicação possível

Com o qual não há verdadeiro entendimento

Nada sabemos da alma alheia

Sabemos da nossa e mesmo assim

A dos outros são olhares

São gestos são palavras

Com a suposição

De alguma semelhança no fundo


Desconheço o autor, mas em diversos lugares é erroneamente atribuído a Fernando Pessoa

Felicidades ao amigo e aos seus!
Beijos************
Renata

R disse...

Olá Carlos,

Muito bonito, muito bem escrito.

Então como vai essa saúde?

Um abraço

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Parabéns, xará. Outro texto bacana. Um abração