Hora vulgar
Acorda a esta hora, como tantas outras, uma hora vulgar. Apenas uma hora de agora, sem história, a não ser a que lhe possa escrever, se o vier a fazer. Pela janela vê tudo à volta ainda escondido no cacimbo. Cacimbo diferente, este. No biombo de nuvens em dança, são mais as brancas do que as cinzentas. O pingar miúdo e frio, soprado pelo vento, pica como fogo molhado, pior do que a mosca que lhe pousa sobre a mão, fugindo de seguida, enxotada por um mexer de dedos. Gesto para espantar, apenas para tal serviu.
O cacimbo, do tempo e do homem, é um sem sol, esmaece o traço e estreita o arco das cores da vida. Apesar de assim ser, ainda deixa perceber um sorriso no recém-acordado. Fosse este um crente de poderes divinos e, por certo, aquele sorriso seria uma aquiescência: tudo parece bem, como os deuses querem. Como o não é, desfaz-se do desenho dos lábios, boceja e diz esta manhã bem podia ter-se apresentado com outra compostura, não aparecer assim, a querer agarrar-me à toa, feita belzebu, desassossegando-me o jeito!
O enfastiar-se de pronto se lhe vai. Não se deixa acorrentar. Não só os deuses as têm, ele também é senhor de algumas artes, como a de virar o cacimbo às avessas, dando-lhe cor.
Sai para a rua a procurar a história que há-de escrever para a hora vulgar que o despertou.
O cacimbo, do tempo e do homem, é um sem sol, esmaece o traço e estreita o arco das cores da vida. Apesar de assim ser, ainda deixa perceber um sorriso no recém-acordado. Fosse este um crente de poderes divinos e, por certo, aquele sorriso seria uma aquiescência: tudo parece bem, como os deuses querem. Como o não é, desfaz-se do desenho dos lábios, boceja e diz esta manhã bem podia ter-se apresentado com outra compostura, não aparecer assim, a querer agarrar-me à toa, feita belzebu, desassossegando-me o jeito!
O enfastiar-se de pronto se lhe vai. Não se deixa acorrentar. Não só os deuses as têm, ele também é senhor de algumas artes, como a de virar o cacimbo às avessas, dando-lhe cor.
Sai para a rua a procurar a história que há-de escrever para a hora vulgar que o despertou.
12 comentários:
Muito bonito!
Beijo
È um excelente exercicio de escrita.
Palavras precisas, bem trabalhadas.
Palavras que fluem, palavras exactas.
Mas meu amigo, levante lá o véu.
O que é que depois aconteceu?
Abraço
acácia rubra
Obrigado pelas tuas palavras simpáticas.
Beijo
Rogério Pereira
Meu caro amigo.
Vou pedir ao Viajante para levantar o véu. Do que ele mostrar darei conta.
Promessa feita, para cumprir.
Abraço
Há textos perfeitos.
Com palavras destinadas umas para as outras num alinhamento imaculado.
E sempre, Carlos, sempre, com aquele tempero africano que lhe dá este sabor inconfundível e me faz apreciar imenso a sua escrita!
Querido amigo, lindo texto..Beijocas
Os seus textos têm tanta poesia que me dão alento para continuar a minha caminhada... Suspiro e com este sopro de vida vai parte da minha intranquilidade e voltam-me os sonhos.
Abracinho
"O cacimbo, do tempo e do homem, é um sem sol, esmaece o traço e estreita o arco das cores da vida"
Existe uma quase "mecânica" onírica, à falta de melhor termo, para breves trechos cujas palavras se envoltam de beleza. E nao é elogio. É constaçao.
UM grande abraço
Olá amigo Carlos!
Segui-te do Rogério até aqui!
Há muito tempo que não vinha cá a casa...e que saudades!!!
Perguntarás, e porque não vens?
Porque quem não aparece ... esquece!
Não te esqueci, mas não há alguma verdade no ditado, não nego!
Amigo, à procura da inspiração numa manhã de neblina cinzenta, saíste para a rua e escreveste um belíssimo texto, como sempre!
Beijinhos da tua amiga,
Ná
Há quanto tempo não leio algo tão fluido e curioso! Gostei muito, Carlos!
"Fácil trocar as palavras
Difícil interpretar os silêncios
Fácil caminhar lado a lado
Difícil saber como encontrar-se
Fácil beijar o rosto
Difícil chegar ao coração
Fácil apertar as mãos
Difícil reter o calor
Fácil sentir o amor
Difícil conter a sua torrente
Como será o interior de outra pessoa?
Quem o saberá sonhar?
A alma do outro é distinto universo
Com o qual não há comunicação possível
Com o qual não há verdadeiro entendimento
Nada sabemos da alma alheia
Sabemos da nossa e mesmo assim
A dos outros são olhares
São gestos são palavras
Com a suposição
De alguma semelhança no fundo
Desconheço o autor, mas em diversos lugares é erroneamente atribuído a Fernando Pessoa
Felicidades ao amigo e aos seus!
Beijos************
Renata
Olá Carlos,
Muito bonito, muito bem escrito.
Então como vai essa saúde?
Um abraço
Parabéns, xará. Outro texto bacana. Um abração
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