terça-feira, 12 de maio de 2009

Liberdade onde estás? (Bocage)

Poeta da Liberdade

Já Bocage não sou!...
À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei!
O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
(…)

As arrumações por vezes resultam nisto: dei com uma velhinha nota de 100 escudos. Escudos, sim, a antiga moeda portuguesa destronada pelo euro, em má hora para muitos portugueses que sentem, desde aí, a vida mais cara. Este, e outros, são preços a pagar por Portugal ter aderido à União Europeia, embora daí tenham decorrido muitos e inegáveis benefícios. O que me parece (sempre pareceu) é que quem negociou a paridade, se assim se pode dizer, do escudo com o euro o fez de modo apressado, incompetente, talvez até leviano. O escudo deveria ter sido mais valorizado. A Espanha lutou por isso e conseguiu-o, mas enfim!

A foto está aqui pela efígie que nela vi: a de Manuel Maria Barbosa du Bocage. Poeta mal tratado como o escudo.
Não é meu propósito deixar aqui a sua biografia. Outros já o fizeram com sapiência.

Então, porquê esta conversa daqui e dali?

Lá vou. Bocage foi um dos cinco filhos de José Luís Soares de Barbosa (advogado) e de Mariana Joaquina Xavier l’Hedois Lustoff du Bocage (de pai francês), nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765 e faleceu em Lisboa, vítima de um aneurisma, a 21 de Dezembro de 1805. Cedo foi para a tropa (Exército, depois Marinha). Desertou, voltou a ingressar, chegando a segundo-tenente da Marinha. Andou por África (Moçambique) e Ásia (Índia e Macau). Passou pelo Rio de Janeiro. Vivendo em plena época da Revolução Francesa, logo se deixou entusiasmar, como muitos dos intelectuais e pensadores portugueses da altura, pelos ideais soprados de Paris: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, o que no Portugal da altura não era bem visto. Como fomos e continuamos a ser de ideias curtas!
Pina Manique, o Intendente da Polícia do Marquês de Pombal, prendeu-o e entregou-o à Inquisição. Foi submetido ao tribunal do Santo Ofício, mas a intervenção de alguns conhecidos e admiradores, salvou-o do pior. Enquanto esteve preso, e porque era um homem de cultura, traduziu para português textos de autores clássicos latinos como Virgílio e Ovídio e de franceses como Voltaire e La Fontaine.
Bocage assinava sob o pseudónimo Elmano Sadino. Não foi só o poeta do erotismo (que muitos à época confundiram, e ainda hoje tantos confundem, com pornografia), da sátira, ou das anedotas, tantas vezes primárias que lhe são atribuídas, exploradas por editores sem escrúpulos, e avidamente consumidas por um público culturalmente indigente.
Cresci com a liberdade de ler sem puritanismos a tolherem-me. Li Bocage. Em boa hora o fiz.
Claro que foi um boémio, frequentou o bas-fond, envolveu-se em amores, uns clandestinos, outros não, mais estes do que aqueles, e em desamores, de onde lhe brotou muitas vezes a inspiração. As mulheres eram as suas ninfas, fontes da excelência de muitos dos seus textos. E não é a beleza, por si só, um alento? Bocage foi, sobretudo, um poeta. Opondo-se à tirania da Monarquia portuguesa da altura, utilizou a poesia como arma na luta pela Liberdade. Parte da sua obra foi censurada e impedida de publicação.
Mas muito chegou até nós, embora os anátemas que sobre ele recaem, desde Pina Manique e da Inquisição, continuem a não o deixar ver e perceber em plenitude. Apesar de tudo e talvez para resgate de uma consciência nacional pesada, a sua efígie foi aposta numa nota de 100 escudos que esteve em circulação entre 1980 e 1990. Na cidade de Setúbal, que lhe erigiu uma estátua, o dia do seu nascimento (15 de Setembro), é feriado municipal.
Para quando falar-se de Bocage, sem preconceitos nem estigmas?
Recordemo-lo como Poeta da Liberdade:

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!), porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?
Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!, venha... Oh!, venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!
Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.
Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!
Outros poemas: clique lá em cima em sapiência.
O quadro reproduzido Bocage e as Ninfas (Fernando Santos,1929) está exposto no Museu de Setúbal.

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