domingo, 31 de maio de 2009

Cogitações (Comer automóveis)




Coma
um
automóvel!




A notícia tem uns dias. Em Espanha, o governo oferece 1.500 euros a quem comprar carro novo. Poderá chegar aso 2.000 se as autarquias de residência dos cidadãos acrescentarem 500. Algumas, como a de Madrid, já disseram que não estão para isso. Objectivo da ideia do Governo: apoiar a indústria do sector, a passar, como muitas outras, por dias difíceis trazidos pela tal crise global desencadeada por patologias mórbidas que infectaram os sistemas financeiros e as economias, a partir da ganância, avidez e ausência de escrúpulos made in United States of América.
O executivo castelhano ter-se-á inspirado, ou não, vá lá saber-se, no livro “El hombre que compró un automóbil” do escritor, humorista e critico galego, Wenceslao Fernández Florez (1885/1964). Um diálogo extraído do livro:
“ A tua decisão de comprar um automóvel parece-me plausível – disse Garcés – e honra-te muito que a tenhas tomado. Os automóveis são as pernas dos homens modernos. Se não tens um automóvel não és nada. Não te envergonha ser um pobre peão?
- Sim; às vezes envergonha-me – balbuciei.
- Naturalmente. A Humanidade considerou sempre como um estigma o ter que andar a pé, e desde os tempos mais remotos procura redimir-se disso, ora montando a cavalo, ora movendo as alavancas de um avião, ora afrontando o ridículo em cima de uma bicicleta. Se andas a pé és um pária. Falta-te, desde logo, algo para seres um homem do teu tempo. Completa-te com um automóvel”.
Em nome da defesa de milhares de postos de trabalho assegurados pela indústria automóvel, como por outras, torna-se cada vez mais necessária a mão interventiva e fiscalizadora dos estados por muito que isso possa parecer, aos neo-liberais de lucros sempre garantidos, uma via socializante, uma afronta ao capitalismo. Mas haverá, certamente, outras formas de o fazer que não a de se andar por aí a dar dinheiro às pessoas para comprarem automóveis novos, em mais um apelo ao consumo desenfreado, que já levou as famílias a estarem como estão, com a corda na garganta! E é certo e sabido que a carne é fraca e a tentação grande.
Que dirá um qualquer dos milhões de cidadãos do mundo que não tem a que deitar a mão para comer, tecto para se abrigar, cavalo para montar, avião para viajar, bicicleta para pedalar, e muito menos um automóvel na malga da sopa dos pobres, quando a há e lhe pode chegar, só lhe restando pés para andar?
No mundo inumano que se anda a construir à mesa farta de uns quantos, a Zapatero, Berlusconi, Sarkozy, e outros, não haverá Wenceslao Fernández Florez que lhes valha!
Ainda nos vai restando algum alento para, apesar de tudo, olharmos com ironia e até com algum humor para o que nos rodeia.


Não tenho na minha biblioteca o livro de Florez. Dei com ele ao passar pelo blog A Cova do Raposo, cujo autor contactei e : "por suposto, podes reproducir o que queiras".

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