segunda-feira, 1 de junho de 2009

Uma rameira (O Tempo)


O Tempo

Já lá vai o tempo em que o Tempo me dava tempo.
Agora, não. Já pouco me cede, e nem por empréstimo se alarga, um nico que seja, antes se encolhe.
Magoa-me, dói-me.

Para além dos padecimentos físicos, põe-se a arranjar-me outros, a ele não lhe falta o tempo para me mortificar, e passa o tempo a dissimular como um fingidor.
Ora me diz que sim, está tudo bem, abrindo-me alentos, ora me amanhece com penares e interrogações, ora me inquieta e desassossega o sono despertando-me com outros oras, roubando-me o tempo do retempero. Quer que eu caminhe sem andar, que ouça sem escutar, que veja sem enxergar, que chore sem lágrimas, que ria sem riso, que grite sem voz, que sonhe sem sonhos, que sofra com dor. Que me zangue sem ira. Que seja inútil e estéril.
Só não diz, nem disfarçando, a que tempo se irá o Tempo.
Mas, o que seria dele sem mim? Nada!
Tenho razão e coração. E ele? Falta-lhe uma coisa, desconhece a outra. Ouço e gosto de ouvir e ver. Olhar o dia, que me traz a luz, os sons e os odores lá de fora, a chegar-me de manhã pela janela semi-cerrada, às vezes de madrugada, e, quando é Primavera, a deixar-me acompanhar o esvoaçar das andorinhas à procura dos beirais, pelo ar aos arrebiques, pintando-me o carro com os seus dejectos ácidos, ou de ver o vizinho que calcorreia, rápido, a rua a caminho da nova pastelaria em busca do croissant acabadinho de sair do micro-ondas. E mesmo no Inverno, quando chove e graniza, ou a luz não é a do Sol mas a de um relâmpago. E ele? Que vê ele?
Quando choro de dor, do magoar que ele insiste em pegar-me, tenho uma mão amiga que me afaga a face, me olha nos olhos e me sustém as lágrimas. E ele?
Quem lhe dá um ombro suave para repousar a cabeça e lhe fala de coisas simples como pagar a conta da água ou do telefone, cada vez mais caras, ou prenuncia a discussão que está para chegar e não atira as zangas para amanhã, das compras a fazer vinda a bonança, ou, ainda, das férias que se hão-de gozar, dando-lhe a consciência de que ainda vive?
Andou ele, alguma vez, por poças de água de caminhos molhados. Deitou-se ele, alguma vez, no capim encharcado depois da chuva? Quando bebeu ele água das lagoas ou rios, depois de neles ter mergulhado, levando-a à boca com as mãos? E o funge, o pirão e o jindungo? Sabe ele o que são? Jogou ele, alguma vez, de pé descalço, com bola de meia enchida de trapos, na lama dos musseques?
Amou ele, alguma vez, arfando de amor?
Ouviu ele, alguma vez, o riso ou o choro de uma criança do mesmo sangue, mais lindos do que os brilhos das estrelas, encostada ao peito, aonde se aconchega para um sono tranquilo e seguro?
Teve ele, alguma vez, tempo para tudo isto? Não, só para me tirar o tempo!
Entre mim e ele corre tudo o que nos separa.
Quem o inventou, quem o trouxe para o meio da gente?
Se tivesse a palavra aqui comigo, e ele fosse ela, chamava-lhe rameira.

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