quarta-feira, 21 de outubro de 2009

De novo o Mwata Milagre

Mafu e Suru
Quem ali está, a ajeitar a rede na canoa, é o jovem Suru. Negro, alto e seco de carnes, como o são os pescadores da Ilha. Cedo se fará ao mar esperançado na recolha do fruto que lhe permitirá sustentar-se e à família. Levará, também, um medo, o de encontrar uma Kyanda.
Kyandas chamavam os pescadores às criaturas surgidas do mar em noite de Lua Cheia, no tempo das calemas. Nunca as viram. Só as silhuetas, ao longe, meio emersas. Que coisas serão, interrogavam-se. Enquanto trabalhavam as artes da pesca fantasiavam. Uns, imaginando tratar-se de princesas de soberanias desconhecidas, outros acreditando serem manigâncias do génio do mar.
Fora sempre assim.
Ao correr da faina, contavam os pescadores aos filhos, uns avistavam duas, outros três ou quatro. Não mais, que as criaturas eram raras de aparecer. E nada de caminhar mar adentro, ao seu encontro. Se o fizessem não voltariam, pois a soberana delas, a Kyanda de Luanda, mais poderosa que a Rainha Ginga das terras de Pungo Andongo, os aprisionaria no seu reino das profundezas, para sempre.
Cachimbando de costas dadas às casuarinas, os mais velhos diziam que nas Kyandas não se poderia tocar, era morte, por certo.
Eram as regras dos dois mundos.
Difíceis para todos, mas em particular para alguns dos pescadores, os que ximbicavam as canoas centenas de metros pelo mar da sua riqueza, lançando as redes para serem puxadas de terra. Era sério, o risco. Mesmo que as não vissem, pois não raro acontecia que de dentro do mar lhes chegava o ruído de alguém ou alguma coisa abrindo as águas em sua direcção. Quando tal acontecia apressavam a faina, rumavam a terra, céleres.
Uma noite a Ilha moveu-se. A Lua mais cheia ficou. As calemas aquietaram-se. O mar mirrou. A Kyanda branca de tranças louras que olhava a Lua deitada sobre uma pedra ficou no seco, tocou terra. A Lua apagou-se. Nuvens escuras almofadaram o céu, luzes fortes as rasgaram, ribombaram trovões, como nunca antes sucedera.
Na praia, os pescadores sentiram as cordas frouxas. O mar encambutou. As redes repousaram sobre a areia com miríades de peixes estrebuchando, caranguejos esticando as tenazes por entre as malhas.
Suru olhou em frente, buscando o explicável. Viu-a na areia húmida. O mar estava lá mais abaixo. Aproximou-se. Deu com olhos verdes, fundos como as águas da sua pesca, reluzindo pregados nos seus. Sentiu um aperto no peito e calor abrasando-o. Correu em frente. Ela atirou-lhe braços e mãos. Repousaram as cabeças nos ombros. As tranças suaves enroscaram-se na carapinha áspera. Soube-lhes um gosto de aprazimento nunca sentido.
Ela e ele sentiam, há muito, a vontade de infringir a lei dos dois mundos.
Ela disse-lhe chamar-se Mafu. Encostaram corpos. A parte dela transformou-se em mulher. Suru sentiu novo calor. Passou-se para Mafu. Inebriaram-se.
Do mar ergueu-se a Kyanda de Luanda, chispando raivas pelos olhos, soltando fúrias pelos cabelos, lançando ameaças pelas mãos. Dos ombros caíram-lhe cachoeiras de águas em fúria como as da Gabela. Ia destrui-los!
Num repente, a Lua voltou a brilhar. A Kyanda de Luanda viu o beijo prolongado de Suru e Mafu. Comoveu-se. Desculpou-lhes o toque profano. Regressou ao seu reino. Nas libatas, assim se chamavam as aldeias da Ilha, ouviu-se o rufar de tambores em festa.
Hoje, os filhos de Mafu e Suru, da cor misturada dos dois, acompanham os pais. Eles ajudando Suru nas artes da pesca. Elas aprendendo com Mafu a entrelaçar o cabelo.
O génio do mar nunca apareceu!

23 comentários:

rosa dourada/ondina azul disse...

Bela história, li-a encantada como se lê uma lenda antiga e fantástica.

Belo relato!

Boa semana,
Deixo um beijo,

FOTOS-SUSY disse...

OLA CARLOS, MARAVILHOSA HISTORIA...ADOREI AMIGO!!!
VOTOS DE UMA OPTIMA SEMANA...
BEIJOS DE CARINHO,


SUSY

UBIRAJARA COSTA JR disse...

Uma linda história, como são sempre as histórias de um amor que vence barreiras e preconceitos...
Muito linda, Carlos.
beijos

Rosa Carioca disse...

Lamento mas vou repetir-me: Adorei!

Agulheta disse...

Amigo Carlos.Uma bela história,onde o amor vençe e triunfa,e que adorei ler.
Beijinho e tudo de bom.

Lisa

Marta Vinhais disse...

Uma história de encantar, de amor, de sentimentos puros...
Adorei cada palavra...
Obrigada pela visita...
Beijos e abraços
Marta

José disse...

Amigo Carlos,
que história encantadora, ainda bem
que nesta história o amor triunfa,
e os filhos, de mafu e suru lá vão
ajudando nas artes da pesca.

grande abraço,José

ney disse...

Bela história, cheia de amor, encanto e magia. Abraço/ney.

Osvaldo disse...

Carlos;

Que bela literatura e a arte de contar "contos"...

Gostei bastante deste seu estilo de escrever e nos fazer passar a vontade de repetir para sentirmos também nós leitores, este aroma suave da espuma das ondas.

Um abraço, caro amigo,
Osvaldo

heli disse...

Carlos.
Vim fazer uma visita em seu blog e deparei-me com uma encantadora história.
Li e reli o texto, tendo o maior prazer em fazê-lo.
beijos,
heli

Teresa Santos disse...

Olá Carlos,

Não me quero repetir (penso que já referi num outro post o que vou afirmar) mas a tua escrita fascina. Tenho a sensação que tens, em ti próprio, entranhado, o mistério de África. Raramente, mas muito raramente, leio posts maiores, mais longos. Mas contido, as coisas são diferentes. Começo e não consigo parar. E Amigo, acredita que isto não é lisonja "barata". Se há coisa que detesto é a lisonja, mas gosto muito do dar, como diz o provérbio, "o seu a seu dono".
E agora, as perguntas que começam a ser habituais. O que são "calemas"? O que significa "ximbicar" e "encabutar"?
Seria óptimo que criasses um glossário com estes vocábulos. Enriquecias (se é que é possivel) ainda mais este teu espaço.
Aqui fica a "dica".
Abraço, Amigo.

Anónimo disse...

avô bonita lenda!
sou eu o pedro, eu tinha te mandado uma mensagem a explicar porque apaguei o blog da divertelandia mas depois explico-te pessoalmente.
agora com este comentário já tens o linque do meu novo blog.

lusibero disse...

Coisa mais linda, este teu conto,CARLOS! Só tenhon pena de não abranger o signifidado das palavras e expressões africanas.A dádiva do amor ,sentido e vivido pelos dois seres "enrolados" nas carapinhas do desejo, está magistralmente descrita! PARABéns por este poema em pura prosa poética! Sensibilizou-me...
BEIJO AMIGO DE LUSIBERO

Rafael Castellar das Neves disse...

Concordo com a Dulce, parece uma lenda antiga! Muito bom!!

Abraço,

Rafael

Mª João C.Martins disse...

Carlos
São doces, calmos e encantados os contos que Mwata Milagre lhe conta.
Sei porque sei,(porque quem conta um conto lhe acrescenta um ponto), que há neste embalo de escrita, muito do que também tem vontade de contar, ( as tais linhas, entre as outras linhas)... e tão bom ler como o faz!

Um beijinho

Graça Pereira disse...

Mágicamente...lindo!!! Que dizer mais? Parabens.
Um beijo.
Graça

Penélope disse...

Olá, meu caro
Como a minha grande amiga LUSIBEIRo o disse, só fico sentida de não conhecer o significado das expressões africanas que tornaria mais profunda minha leitura.
Mas sou curiosa e vou a captura.
Se quiser indicar-me leituras que me acrescentem a respeito, agradeço.
Quanto ao teu contar, embrenhei-me pelas dualidades do real e irreal, essas duas forças que estabelecem equilíbrios em nossas vidas.
Por se tratar de um LUGAR forte, de onde as pessoas tiram vida, muitas vezes de onde não se as têm, é que me encanto tanto.
Beijos amigo

Teresa Santos disse...

Amigo Carlos,

Tens um Miminho no meu blog.

abraço e bom fim-de-semana.

ANTONIO SARAMAGO disse...

Por vezes há males que apoquentam uma pessoa, mas que em vez de a desmoralizarem, lhe dão muita força para se agarrar á vida e na sequência disso, arranjam inspiração, vão buscar forças onde se julga impossivel e você Amigo Carlos, é uma dessas pessoas, porque apesar de estar limitado (seg. você o diz)tem talento para escrever sobre coisas e casos do arco da velha e bem bonitos.
Você diz que sou um sortudo...
No meio de tantos azares, felizmente que tive a sorte de ter a Mulher que tenho...
BOM FDS., abraço amigo

uminuto disse...

encantam-me as tuas histórias, lendasa encantadas que trazem o aroma de África a este blog
um beijo

Lisboa disse...

Carlos, boa noite!
Ando meio frustrada por não poder estar acompanhando essas estórias maravilhosas que contas com tanta magia...
Estou , realmente, cheia de trabalho( o que agradeço a Deus todos os dias!) o que termina por tomar-me bastante tempo , deixando-me cansad e com sono! Porém, logo que as coisas aliviarem , voltarei , com mais calma, para apreciar as "suas histórias fantásticas"! Grande abraço e um lindo fds.
Nereida

Elvira Carvalho disse...

Um texto que só podia ter sido escrito por um poeta ou um sonhador.
Lindo.
Um abraço

Si disse...

Era precisamente disto que eu falava. Daquele imaginário que só o mar, o céu, o sol e a gente africana conseguem expressar.
Um fascínio que este continente tem intrínseco e que até no descobrir das palavras nos deixa sequiosos.
Senti-em honrada com a visita de Mwata ao meu espaço.
Volte sempre.