sábado, 17 de março de 2012

Do Mwata


Consciência
No céu mortiço de azul baço, nuvens e as suas sombras caminhantes escondendo o horizonte, vê uma borboleta, saída da alma, trazendo a manhã pelas asas.
Não soubesse ele ser ela quem é, diria estar com cara de tempestade vinda para amassar.
Mas, não. O que ela está é masé atarefada, esta sua manhã.
Como mulembeira sarmentosa, de pau novo, plantando os ramos com folhas de um verde recém-nascido, de cujas axilas brotam frutos monandengues ainda, que as pintadas recolherão quando de mucefos caírem.
Dela faria um poema, soubesse ele escrevê-lo!
Na sua cubata, porém, o poeta não mora! Apenas uma flor de embondeiro por ali se vê andar, e dizer numa voz de perfeita imperfeição ser a flor da vida.
 Paleta e espátula na mão, a manhã chegada mistura cores, trabalhando, com afã, no retrato do dia.
Olha-a.
Move-se, para cima e para baixo, como que a querer dizer que lhe segue o pensamento.
Sabe lá ela!
Ainda assim, pergunta-lhe ele:
- Que cores tens tu?
A manhã, que sabe não ser o sentido oculto de coisa nenhuma, responde-lhe, de pronto:
- Que te importam as cores? Só vês o visível!? Ter consciência é mais que ter cor!
Ouvido isto, ele fica a pensar no mistério do que se quer dizer. Ela aquieta-se. Volta à tábua das tintas. Um traço mais. Obra completa. Pronto, está feito o Domingo para ele usar amanhã, que hoje ainda Sábado é. Domingo um pouco muxoxo. As nuvens ronronarão, por elas ximbicará o vento acinzentando-as.
Outros afazeres a chamam. A manhã parte. Não sem antes lhe dizer:
- Não te esqueças, ter consciência é mais que ter cor.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Os Kalús e o Milagre


De quando eu era um Kalú reguila

 Éramos seis putos, andando pelos sete e os oito anos, companheiros na Escola 8 de Luanda.
Sempre que apanhávamos um intervalo maior, uma «borla» por falta de professor, a escola encerrada por força de uma daquelas chuvadas fortes, que caíam sem aviso prévio desventrando a terra, ou ainda porque nos apetecia gazetear, lá voltávamos costas às aulas, correndo para a Lagoa do Kynaxixe, na altura o limite da cidade. Depois dela, era o mato. Para lá íamos em algazarra ululante de miúdos kalús.
Com as sandálias, de pano e sola de pneu velho, ensacadas nas mochilas, seguíamos descalços tocando de mansinho a terra com as palmilhas dos pés, todas brancas. Até mesmo as dos negros e mulatos o eram, o que então muita confusão me fazia porque cor igual em todos também, só nas palmas das mãos e no sangue que via, assustado, quando algum de nós se arranhava numa das piteiras que estendiam os braços de picos eriçados por entre o capim. Aquilo deixou de me afectar, quando um dia aprendi que nos reproduzíamos todos pela mesma cor – a vermelha do sangue –, e nos amávamos e matávamos igualmente com a mesma – a branca da palma das mãos.
Da Escola 8 à Lagoa eram para aí novecentos metros, mil, contas ajeitadas, sempre a correr pelo capim, galgando um ou outro arbusto. Fazíamo-lo não se nos ouvindo um único resfolgo. O cansaço só mais tarde nos colhia. De súbito, estávamos ali, junto da água barrenta, alguma da chuva, outra, talvez a maior parte, vinha de baixo, das veias da terra, ou fosse lá de onde fosse, trespassando pedras e areia fina.

No Cacimbo, aquela água chegava a ser transparente e conseguíamos ver um ou outro bagre pequeno, esse estranho peixe que consegue sobreviver na lama, indo buscar oxigénio a reservas que ele próprio constrói dentro de si, por alquimias secretas. No Calor, como era o tempo em que ali estávamos, ela ficava turva, do tom da terra vermelha da zona, e, também, mais alta. A Lagoa enchia, prenhe das chuvas grandes do nosso fascínio.

Sempre que aquelas águas caíam e andávamos por ali à solta, os calções e as camisas juntavam-se às sandálias nas sacolas escolares. Todos nus corríamos de um lado para o outro, caras viradas para cima. Bocas abertas, bebíamos o céu deixando a água fresca tanger-nos as gargantas e voltar a sair, correndo-nos pelo peito, excitando-nos o coração de meninos mais valentes do que os heróis das histórias do Mosquito.
Éramos capitães de um só medo: pisar a água da Lagoa sem antes ouvirmos o Velho. Só ele sabia se a surucucu andava por ali naquele dia, ou não.

E, outras coisas!
O Velho, – o Mwata de nome Milagre –, homem de servir em casa dos meus pais, no Largo da Tendinha. Também ele se evadia para a Lagoa, sempre que podia, para falas com os «mininos da Escola». Magro e seco como um abacateiro, igual aos que nas roças crescem esguios até ao Sol, lá abrindo a copa maior que um capacete colonial parecido com o que o meu avô usava, protegendo com a sua sombra os cafeeiros de muitos braços carregados de ouro negro, que faziam a riqueza de uns quantos e, aprofundavam a escravidão e miséria de muitos outros. O Milagre era alto como as mangueiras da Funda, e velho como um embondeiro. Tal como este, já nem sabendo a idade ou mesmo se menos velho alguma vez tinha sido. O meu Mwata nascera já assim, por certo: com idade crescida, e sábio.
Com o Milagre, ficávamos até o Sol avisar serem horas do regresso a casa. As suas mãos secas de dedos finos e compridos como os dos artistas, esculpiam no ar histórias de encantamentos, que escutávamos seduzidos. De quando em quando interrompia-se, quedando-se em silêncio a fumar um cigarro enrolado com a parte acesa virada para dentro da boca, como fazia a lavadeira da minha casa enquanto esfregava a roupa com o filho dormitando agarrado às costas por um pano envolvendo-lhe o peito.
Às vezes, o Milagre alçava os braços.
Não entendia porque o fazia.
Pareciam-me impulsos do coração do Velho, em busca de mistérios perdidos ou de acontecimentos para anunciar, lá por cima, nas terras dos deuses. Olhava-o, a ver se sim, mas permanecia inescrutável. – Não resisti. Um dia, perguntei-lhe:
- Porque te chamas Milagre?
Virou-se para mim. Ameigou-me o queixo e o cabelo com as mãos. Levantou-me suavemente a cabeça. Deixou repousar os seus olhos nos meus, e respondeu:
- Porque Deus me fez, e a minha mãe me disse assim!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia da Mulher

Neste Dia Internacional da Mulher chegou-se-me à memória uma mulher que conheci há muitos anos, andava eu em serviço por Angola. Dela falei num texto aqui publicado em Novembro de 2009. Reedito-o.
 
[“Era uma vez um belo dia de Sol. Parti para o destino da reportagem - um campo de leprosos a Norte de Luanda. À chegada o Sol perdera a perfeição com que nos cativa o espírito, estava já a entregar-se ao adormecer da tarde.
Um fileira de casas de pau-a-pique, carcomidas pela idade e pelo abandono, algumas palhotas e um casebre, destelhado, onde gente de uma ONG angolana preparava refeições para distribuir.
Tinham-me avisado para me “preparar para o choque”. Fizera pouco caso. Já vira horrores de três guerras, sentia-me blindado. Avancei por aquele espaço onde tudo era sombra. Olhei por portas meio caídas, entrei numa e noutra palhota. Vi restos de gente, quase sem rosto, arrastando-se, corpos ansiosos aguardando o pão que, sabiam, estava para chegar. Como sabiam que nada mais lhes caberia do que ali ficarem, ostracizados, entregues à ferocidade do destino. Saí com o coração a doer-me e lágrimas a chorarem. Respirei fundo. Prossegui.
Alguns metros à frente parei junto de uma porta. Ali estava sentada uma velha com o que lhe restava das mãos sobre os joelhos. Olhámo-nos. Os seus olhos, grávidos de tristeza, rodaram, como a ensaiar um gesto. Disse-me alguém que me acompanhava: “Ela quer um cigarro.”
Baixei-me, de joelhos, frente a ela. Acendi um cigarro e levei-o ao que, outrora, teriam sido os seus lábios. Aspirou o fumo. De novo os seus olhos me procuraram, agora esvaziando uma lágrima a sorrir. Ia levantar-me quando o que das mãos lhe restava se encostou às minhas. Ouvi-lhe um sussurro:
- M´adesculpa, só. T´agradeço.
Levantei-me em silêncio, não sabendo o que dizer. Regressei, coração gelado, trazendo aquele olhar grávido comigo.
As mãos, que ela tocou, são estas com que hoje escrevo.”]
(ainda hoje me encontro com aquele olhar)

quarta-feira, 7 de março de 2012

Do Mwata

A Flor da Vida
Barba mergulhada entre as mãos.
Pensamento prisioneiro do silêncio, parecendo o encarcerado por Calipso em Ogígia.
Alma de face esmaecida, voz cava, prolongada, perdida, vagando. O que avista não é o seu mar. Este tem espumas de sombra. Lá, num longe que já não alcança, está o seu mar da Kyanda, de quietude serena, com ondas brincando às pedrinhas com diamantes lapidados pelo Sol. Lá, naquele longe, está o canto da Kyanda ao entardecer e nas noites em que a Lua desce para amar o mar, deixando que, junto às casuarinas, todos se amem.
O espírito, esse, não gosta que a vida se arraste pelo silêncio. Pode ser que os deuses, os mortais e os que o não são, os quimbandas, ou até mesmo as kuxingilas, o queiram, ele não.
Decide, então, partir em viagem no seu dongo, a caminho da cacimba do velho embondeiro. Leva o pungue para chamar a árvore, e a quinda para trazer o tesouro que tem de trazer para a alma voltar a sorrir.
Sabe ele, o espírito, que antes das múcuas nascerem o embondeiro poderá deixar cair as flores da vida sobre a água. É uma delas que ele procura.
Hoje, pelo capinzal, abriu-se caminho. A neblina, forro da cacimba, levantou-se. Uma flor ele vê. Recolhe-a. Trá-la. Oferece-a à alma, dizendo-lhe:
- Dá-lhe amor a comer e carinho a beber. Desta flor brotará vida.
Ilumina-se a face da alma, desenhando-se-lhe de novo o sorriso.