A guerra... Ouviram. Paulo quis saber. Trouxe-os a cidade.
A velha matriarca, sentada no toco duma mulemba, mulher do seculo de carapinha que a idade tornou mais rala, lança pós de fumo para a fogueira. Repousa a cabeça sobre as mãos abertas e cotovelos fincados nas pernas, vestidas por matebas. Leva o olhar a percorrer as espirais desenrolando-se até que o vento as recolhe. Desce o silêncio. Na mata em redor aninham-se os rumores, mudos. Odor estranho envolve-os. Pergunta Paulo:
- O que está ela a fazer?
Diz-lhe André, o amigo e companheiro de viagem:
- A matriarca queima pós para aceder aos favores dos deuses bons, ou afugentar, por si só, os abundantes espíritos, malignos e contumazes. Ensinaram-me os mais velhos da sanzala onde me deixaram para nascer. Me contaram, até, que a voz da matriarca costuma falar outras vozes. Ela, agora, procura resposta para te dar.
Seja lá pelo que for, este relacionar personalizado da velha com o que, à falta de melhor, poderá chamar-se sobrenatural, prática a que, nos muitos povos ao redor, apenas ela se atreve, e não é de agora, já vem de quando o tempo era outro, é, sem dúvida, um sinal de amizade e respeito, só muito raramente esboçado, para com o visitante branco, que hoje lhe chegou e de quem o seculo disse ser amigo. Dissaquelas assim, em que para além dos pós usa um manipanso, unhas de pintada, pelo negro de juba de leão, pé de cabra, e palavras sem rosto, fá-las pela primeira vez.
Os esclarecimentos de André não ajudam. Paulo escuta, finalmente, a voz dela, de olhos tristes, não digo o que vi, só sei que te chamam!
Paulo fica por compreender, regressa com André.
Semanas passadas é militar, por chamamento à vida da tropa.
Não é grande o tempo corrido, o vento traz-lhe notícias:
“Antes do alvorecer, os deuses, e os outros, ausentaram-se da sanzala da matriarca e do seculo. Rebentaram obuses. Espingardas dispararam. Da ponta da sanzala, e do outro extremo, saiu gente a correr para o bananal e cafeeiros mais próximos. A metralha crepitou, ceifou. Com brancos e negros dentro delas, fardas rastejaram. De tubos soltaram-se labaredas. Cubatas em chamas desmoronaram, soterrando quem dentro estava.
A matriarca e o seculo não chegaram a acordar. Da mão da velha tombou, queimado, o manipanso. O seculo como estava ficou, enroscado a seu lado.
O amanhecer rompeu a sangrar.”
A velha matriarca, sentada no toco duma mulemba, mulher do seculo de carapinha que a idade tornou mais rala, lança pós de fumo para a fogueira. Repousa a cabeça sobre as mãos abertas e cotovelos fincados nas pernas, vestidas por matebas. Leva o olhar a percorrer as espirais desenrolando-se até que o vento as recolhe. Desce o silêncio. Na mata em redor aninham-se os rumores, mudos. Odor estranho envolve-os. Pergunta Paulo:
- O que está ela a fazer?
Diz-lhe André, o amigo e companheiro de viagem:
- A matriarca queima pós para aceder aos favores dos deuses bons, ou afugentar, por si só, os abundantes espíritos, malignos e contumazes. Ensinaram-me os mais velhos da sanzala onde me deixaram para nascer. Me contaram, até, que a voz da matriarca costuma falar outras vozes. Ela, agora, procura resposta para te dar.
Seja lá pelo que for, este relacionar personalizado da velha com o que, à falta de melhor, poderá chamar-se sobrenatural, prática a que, nos muitos povos ao redor, apenas ela se atreve, e não é de agora, já vem de quando o tempo era outro, é, sem dúvida, um sinal de amizade e respeito, só muito raramente esboçado, para com o visitante branco, que hoje lhe chegou e de quem o seculo disse ser amigo. Dissaquelas assim, em que para além dos pós usa um manipanso, unhas de pintada, pelo negro de juba de leão, pé de cabra, e palavras sem rosto, fá-las pela primeira vez.
Os esclarecimentos de André não ajudam. Paulo escuta, finalmente, a voz dela, de olhos tristes, não digo o que vi, só sei que te chamam!
Paulo fica por compreender, regressa com André.
Semanas passadas é militar, por chamamento à vida da tropa.
Não é grande o tempo corrido, o vento traz-lhe notícias:
“Antes do alvorecer, os deuses, e os outros, ausentaram-se da sanzala da matriarca e do seculo. Rebentaram obuses. Espingardas dispararam. Da ponta da sanzala, e do outro extremo, saiu gente a correr para o bananal e cafeeiros mais próximos. A metralha crepitou, ceifou. Com brancos e negros dentro delas, fardas rastejaram. De tubos soltaram-se labaredas. Cubatas em chamas desmoronaram, soterrando quem dentro estava.
A matriarca e o seculo não chegaram a acordar. Da mão da velha tombou, queimado, o manipanso. O seculo como estava ficou, enroscado a seu lado.
O amanhecer rompeu a sangrar.”
Em patrulha pela savana, longe muito longe, Paulo parou.
O vento deixara de soprar.
17 comentários:
Há sempre qualquer coisa de mágico por aqui. Sabe bem ler este blog. Vou levar a história para a almofada.
Beijinho da neta
Carlos.
Tem um selo para você no blog Chega Junto.
Beijos,
heli
Bom dia, Carlos
Sempre cruel relatos que envolvem guerras, povos em sofrimento, vidas ceifadas...
Há um prêmio para este seu instigante blog lá no Livro dos Meus Selos. Por favor, passe lá para retirá-lo
<< http://em-prosa-e-verso-selos.blogspot.com >>
Beijos
Dulce
Olá amigo Carlos.
Desculpe por eu não ter comentado nos dois posts anteriores, quando você é quase sempre o primeiro a comentar no meu blog.
É que à coisas que eu não entendo muito bem, por isso fico calado.
No post dos jogos eu sou um aprendiz da Internet,para não dizer um nabo.
E quanto à guerra apenas vou repetir aquilo que já disse.
O amanhecer rompeu a sangrar.
uma boa semana
e um grande abraço,José
Carlos;
Por mais dolorosas que sejam as guerras, é bom lembrá-las e comentá-las para que esta praga que só serve os interesses de alguns, que nem à guerra vão,... não caia no esquecimento pelas desvastações que comete. Só lembrando disso, a humanidade pára para pensar antes de ser envolvida noutras guerras.
Tema bastante profundo e que leva a reflectir, este post.
Um abraço, amigo Carlos,
Osvaldo
Muito obrigada pela visita e por suas palavras tão carinhosas- como sempre você muito gentil. Escrevo com amor, pois amo o Brasil e seu povo e toda noss cultura, mesmo diante de tantas dificuldades.
Volte outras vezes, FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... terá sempre uma história para contar.
Saudações Florestais !
Silvana Nunes.'.
Olá, Carlos!
De repente, fui transportado para um cenário onde estive, Angola.
Felizmente, estou são e salvo. Mas muitos outros militares, infelizmente...não o poderam dizer.
Parabéns pelo belo texto!
Uma boa semana.
Um abraço.
Mário
Caro carlos,não poderia deixar de indicar o seu blog para o selo "Meme"(passe lá no meu blog e pegue. É seu!) pois , apesar de nem sempre postar comentário por falta de tempo, sempre dou uma passadinha para conferir suas estórias incríveis! Desejo-lhe uma semana de pura magia...
Um texto belo, mas um pouco triste.
Na lateral do blog há o "Selo Amigo fiel",(se vc não tiver) gostaria q aceitasse
mil beijinhos no coração!
Marta,
Que bom teres levado a história!
Beijinho
Heli
Dulce
Grato pelos. Já fui aos vossos blogs em busca dos selos.
Obrigado pela gentileza
José.
A sua presença é sempre bem-vinda!
Não deixe, nunca, de entrar.
Um grande abraço.
Osvaldo
A guerra...passei por ela. O texto envolvido por odores da minha vivência africana pretende ser apenas uma crónica de não esquecimento.
Um abraço
Silvana Nunes
Grato pela sua visita. Estarei sempre lendo as histórias e lendas do Brasil no seu blog
BJS
Mário Margaride.
É verdade, Angola, a guerra sem sentido, onde estive!
Um abraço
Nereida.
Histórias incríveis, não sei, vão saindo ao correr da pena pela memória.
Já passei no seu blog e trouxe o selo, obrigado.
Eu.
Tudo que recorda guerra é triste, eu sei, mas também não podemos esquecer...
Vou trazer o selo, obrigado
Beijinhos
E o amanhecer romperá sempre a sangrar enquanto a guerra esventrar as almas e os corpos frágeis daqueles que não querem a guerra...
Sofá Amarelo.
Guerra. São mais os que a não querem, mas continua a fazer-se!
Até quando?!
Deixaste-me triste. Voltaram, de novo, momentos que, se por um lado gostaria de esquecer, por outro, não. Se lembro daquela guerra estúpida (aliás, todas são), do som dos tiros, dos atabaques a anunciar o próximo ataque, do ataque à escola que frequentava e a aflição dos meus pais (e de outros) para obter notícias dos filhos; ao mesmo tempo lembro de uma terra linda, com pessoas lindas e com um pôr-de-sol inigualável.
Para quem viveu a guerra colonial, este relato encontra eco nas suas recordações...
Um abraço
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