O Sorriso
(Transpirar de uma memória)
Aumentou o som do gira-discos para que todo o pelotão ouvisse Jingle Bells, naquela véspera da Consoada. Ordenou, de seguida, que verificassem as armas e munições, e distribuíssem a ração de combate pelos bolsos dos camuflados. Ao pescoço pendurou a máquina fotográfica, companheira de andanças, guardadora de memórias.
Com o nascer da manhã, cinzenta e cacimbeira, chegara a ordem para avançarem ao encontro da sanzala à beira da lagoa, bombardeada de véspera por ser tida como abrigo do inimigo. Natal sem presépio seria o seu, vivido a verificar danos, registar baixas infligidas, marcar a sanzala como território vencido e domado.
Ultrapassada a ourela da mata, caminharam separados pelos contornos das árvores, dobrando-os como esquinas cortantes num andar penoso, procurando pisar com cuidado pedaços de chão não estalantes para que o solo se não fizesse ouvir, denunciando-os. Ele ia pensando que este, como todos os outros passos que até ali o tinham levado, mais não eram do que um procurar da inutilidade, de um obstinado e cego adiar do que a História iria escrever.
Chegados, a névoa confundia-se com o fumo que subia da terra queimada, das lavras ardidas, das cubatas em destroços. A paisagem já não era verde, como a deixada para trás, mas turva. Diante dos olhos teve ele, surpreso, gente a chegar do outro lado da lagoa: crianças, mulheres e homens idosos. Vindos de mais atrás, ouviu latidos e cacarejos. Baixem as armas! Ordenou.
Com uma criança pela mão, um dos velhos, quiçá o soba, caminhou, lento e desconfiado, ao seu encontro. Bom dia, disse. Bom dia, respondeu-lhe, perguntando a seguir: onde estão os homens novos? Aqui não tem, já não tem deles faz muito tempo, foram na guerra da guerrilha, anunciou a voz do velho. Na guerra?! Então, velho, o que aconteceu aqui? Aqui, senhor, só nos mandaram bombas, nos queimaram as lavras, secaram a terra e nos fizeram fugir com os cães, os cabritos e as galinhas. Não teve guerra, não senhor. Os soldados de matar só chegaram agora. E mortos? Não tem deles, senhor.
Franziu-se-lhe a testa, entregou-se ao esforço de tentar compreender o que acabara de ouvir. Soldados de matar…!? Nisto estava, com o pensamento querendo correr para longe, quando a criança se soltou do velho e lhe puxou por uma das mãos. Tenho fome, mais velho da tropa, me dá comida. O dizer do menino entrou, turbulento, por ele adentro, fazendo-o cerrar os punhos e levá-los ao peito.
Num repente esvaziou os bolsos, deitando para o chão o que lhe restava da ração de combate. A criança atirou-se a uma embalagem. Pediu-lhe, por gestos, que a abrisse, levou à boca o que dentro dela saiu, trincou e logo fez o mais lindo sorriso, com uma mosca pousada na ranhoca à mistura, que ele alguma vez vira, sorriso acompanhado por um tagradeço amigo! Deste-me o meu presente de Natal, pensou sem o dizer. Guardou o riso na máquina das memórias. À noite dormiu ao relento. No céu apenas brilhava uma estrela com ar de andar à procura, e um fulgor diferente do que era hábito ver-se por ali luzir.
Aquele sorriso transformou em paz a agitação do seu interior, mudou-o para sempre, já não era o que nunca fora nem quisera ser, um soldado de matar, mas um amigo.
Regressado ao aquartelamento o seu pelotão foi autorizado a ajudar na reconstrução da sanzala. Semanas passadas o quimbo ajeitou-se. Reergueram-se as cubatas, os animais regressaram ao seu andar à solta, mulheres e homens idosos estavam de novo entregues ao amanho das lavras, as crianças brincavam, a velhice dos homens voltara a ser aquecida pelo sol, as mandioqueiras voltaram a crescer, bem como o caxinde. O soba podia, de novo, sentar-se à porta da cubata. Pela lama das franjas da lagoa já não corriam pés em fuga. Ele terminou o tempo de andar fardado.
No avião que o levou de regresso à terra da sua casa distante, releu a carta escrita à mulher no dia de Natal. Nela lhe contara a festa de despedida na sanzala da lagoa, e que tinham dado o seu nome a uma mandioqueira. Depois, tirou do bolso a fotografia do sorriso e falou-lhe: tagradeço amigo!
