sábado, 6 de junho de 2009

Palavras Sábias (Não se faz queixa de um irmão)



Era Sábado
O meu irmão mais velho
e eu.
Tremuno rijo, que é como quem diz jogar à bola, em linguagem mais tratada, no quintal lamacento da nossa casa, com uma redonda de meia, entrapada com pedaços de serapilheira e sumaúma da mafumeira do Kynaxixe à mistura; quando disto não havia, também lá metíamos papel pardo de cartucho com que o Sr. Mário, de alcunha “o porco sujo”, embrulhava a manteiga na mercearia ao lado da Invicta.

Só um instante para dizer porque foi o Sr. Mário assim alcunhado. Andava sempre de avental, atado à barriga e não pendurado ao pescoço, com surro acumulado por nele limpar as mãos depois de as ter tido na lata da manteiga, nos potes da banha, no toucinho, nos torresmos, nos chouriços, nas morcelas, nas barricas da salmoura, nos fardos do bacalhau da Noruega, nos figos secos a granel, na torneira do barril de vinho tinto, nas barras do áspero sabão macaco, nas latas de petróleo para os petromax, no dendem chegado do Caxito, nas curitas para os arranhões, na testa para sacudir o suor, sei lá em que mais (naquela mercearia havia de tudo, como na drogaria, incluindo quinino para as sezões e sulfamidas para as feridas), sem nunca as passar por água e sabão! Às vezes, viram os meus olhos de puto, encarrapitado na ponta mais baixa do balcão, também chegava o avental ao nariz. Eu gostava do Sr. Mário, sempre o tratei assim. Quando lá ia, a mando da minha mãe, buscar manteiga para matabichar e lanchar, dava-me, nunca se esquecia, dois rebuçados que tirava de um frasco redondo de boca larga com aquelas mãos, e uma piscadela cúmplice do olho esquerdo. Que bem me sabiam, a guloseima, com sabor a abacaxi, e o piscar!

Voltando ao Sábado que aqui me trouxe.


Pontapé daqui, corrida para acolá, mergulho a defender, ora ele, o meu irão, ora eu, chega para lá pelo ombro, como víamos fazer aos seniores; e, claro, o puxar pela camisa para atrasar a chegada à bola, sem que fosse marcada falta pois árbitro não tínhamos, ali só nós, quer dizer, ele, o mais velho, mandava. O meu resmungar de nada servia. E pronto! Zás, um puxão mais forte e lá se foi a camisa com um rasgão de alto a baixo. Pus-me a chorar e fui a correr para dentro de casa, procurar a mãe para lhe dizer que tinha sido ele, o mais velho, a fazer-me aquilo. Mal acabei, ofegante, o que lhe fora comunicar, puxou-me uma orelha e disse-me:
- Não se faz queixa de um irmão. É feio!
Deu-me uma ralha e mandou-me para a celha do banho; indiferente continuou a fazer o que estava, não querendo saber de mais nada. As lágrimas secaram-se-me. A orelha latejante e aquelas palavras entraram por mim adentro, abalaram-me. Eu, inocente, fora castigado. Ele, o rasgador de camisas, que também me pregava rasteiras e me magoava as canelas, embora disto não me tivesse queixado, ficara incólume! Não era justo! Este sentido de injustiça não cedeu, não acalmou, não me deu tréguas. Não fosse eu tão recente na vida e ela minha mãe, teria berrado; fiquei-me por gemidos e lamentos surdos que me tomaram o corpo. À noite, ao deitar-me, olhei para o tecto e pus-me com ele à conversa, quer dizer, conversa conversa não era, dos dois só eu falava, como desde cedo na vida continuo a fazer. Porque me dissera ela o que disse? O que quereria ela dizer que ficara calado? Nunca diz tudo o que pensa...Pois, se calhar, que devia ter resolvido o problema entre mim e ele, lá no quintal, não chegando a ela de lágrimas e dedo acusador. Se calhar… Adormeci. Andei pelos sonhos à busca de entendimentos que não fossem mudos como eu ficara. Acordei convicto: fora sapiente, a mãe, no que dissera, e acertada no “castigo”. É mesmo feio fazer queixa de um irmão. A orelha deixou de doer. As palavras, essas, ficaram, têm-me acompanhado ao longo da vida, continuam cá dentro.

1 comentário:

Mª João C.Martins disse...

Carlos

É delicioso este relato! Muito bem escrito, muito bem descrito e quantos pormenores eu identifico também na minha vida. É o saber de mãe... esse tesouro que mantemos guardado e o revelamos nas mais pequenas coisas da nossa vida!
Espectacular....